A Câmara do Rio se prepara para votar mais uma versão do “mais valerá”, projeto do Executivo que, sob o argumento de modernizar o uso do solo e incentivar investimentos privados, abre espaço para uma nova rodada de flexibilizações urbanísticas. A proposta permite que estacionamentos de shoppings, supermercados, hipermercados e hospitais sejam convertidos em empreendimentos residenciais ou comerciais, mediante contrapartida financeira à prefeitura. Na prática, trata-se de um modelo de “urbanismo negociado” — em que a cidade é adaptada não a partir de um planejamento integrado, mas de acordos pontuais que favorecem grandes grupos econômicos em troca de arrecadação.
O “novo mais valerá” não é uma proposta isolada, mas parte de uma estratégia recorrente do governo Paes de usar o instrumento da outorga onerosa para reforçar o caixa municipal sem recorrer a aumentos de impostos. Estima-se uma arrecadação de R$ 300 milhões em contrapartidas nos próximos anos. No entanto, ao atrelar a expansão urbana à capacidade de pagamento das empresas, o projeto reforça um padrão de desigualdade espacial: as novas construções tendem a se concentrar em regiões já valorizadas, como Barra, Recreio e Jacarepaguá, enquanto a Zona Norte e o subúrbio continuam à margem dos investimentos estruturais.
O discurso oficial defende que a medida aproveita “vagas ociosas” e estimula o adensamento urbano sustentável. Mas a realidade é mais complexa. O projeto cria uma espécie de “fast track” urbanístico que favorece quem pode pagar. A reincidência do modelo — esta é a segunda edição do “mais valerá” só em 2025 — indica que o urbanismo carioca segue sendo ditado pela lógica da urgência fiscal e da conveniência política, e não por uma visão de longo prazo para a cidade.
Urbe CaRioca
Morar no estacionamento do shopping ou do supermercado? Projeto no Rio pode permitir prédios nesses espaços; entenda
Proposta estabelece contrapartida financeira. Iniciativa do Rio também prevê que hospitais existentes ganhem mais dois andares
Por Selma Schmidt — O Globo

Projeto de lei complementar do Executivo, que deve ser votado nesta quinta-feira pela Câmara Municipal do Rio, abre caminho para novas construções em estacionamentos de shoppings, supermercados e hipermercados — mediante pagamento de contrapartida à prefeitura. Os terrenos poderão ser aproveitados para erguer edifícios residenciais ou comerciais. A proposta também se estende a hospitais e clínicas, que conseguirão levantar até mais dois andares sobre a cobertura, compensando financeiramente o município.
Prevista inicialmente para esta terça-feira, a votação do novo “mais valerá” acabou não acontecendo. A sessão ordinária caiu por falta de quórum.
O secretário municipal de Desenvolvimento Urbano e Licenciamento, Gustavo Guerrante, estima uma arrecadação de cerca de R$ 300 milhões, nos próximos quatro ou cinco anos, com contrapartidas que permitam a realização das obras de expansão dos estabelecimentos, após a aprovação e a sanção do projeto.
No caso de shoppings, supermercados e hipermercados, o projeto autoriza aumentar a taxa de ocupação horizontal do terreno em até 20%. Esse espaço poderia ser usado para ampliar o estabelecimento, com a altura do novo imóvel semelhante ao existente, sem exceder a área total edificável permitida.
Gabarito da área é limite
Mas será possível aumentar o gabarito. Para a verticalização, explica Guerrante, o interessado teria que adquirir potencial construtivo de uma das três Operações Urbanas Consorciadas (OUC) em curso — do Autódromo Parque Guaratiba, do Estádio São Januário ou do Parque Legado Olímpico. Os metros quadrados comprados poderiam ser usados em setores receptores localizados em Barra, Recreio, Jacarepaguá e trecho da Zona Norte.
— O limite da verticalização é o gabarito de cada local. Será preciso obedecer à legislação local, basicamente o gabarito — explica o secretário.
Entre os espaços que poderiam ser receptores, uma apresentação da prefeitura cita shoppings como Barra Shopping, New York Center, Via Park, VillageMall, Barra Garden e Rio Design Barra. Entre os supermercados, estão Carrefour, Supermarket Barra, Atacadão Barra, Assaí Atacadista e Mundial Recreio.
— Vamos usar o exemplo do Carrefour. Ele aumenta em 20% o que tem hoje. Compra também potencial de alguma OUC e vende para ter um residencial em cima. Os moradores desse prédio certamente usarão o supermercado. Há algumas vantagens — acrescenta Guerrante.
O Carrefour ocupa atualmente 30% de seu terreno de 107 mil metros quadrados. Portanto, os 20% em que poderia construir teriam 21.400 metros quadrados.
‘Vagas ociosas’
Presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Rio (Sinduscon-Rio), Cláudio Hermolin diz que o setor vê com bons olhos o projeto:
— Conceitualmente, somos a favor de um projeto que possibilite principalmente o crescimento horizontal de empreendimentos comerciais. Hoje, alguns deles ficaram com uma taxa de ocupação baixa dos terrenos. Terrenos que se tornaram estacionamento acabaram ociosos. Com os aplicativos de transporte, você não precisa mais de tantas vagas. Também ao se construir uma ampliação do shopping com mais quatro andares, por exemplo, ele pode ser tornar improdutivo.
Vice-presidente da Multiplan — empresa de investimentos imobiliários, sobretudo em shoppings, com 18 mil funcionários —, Vander Giordano aprova a iniciativa. Durante a realização de audiência pública, no início deste mês, ele afirmou que todo projeto de lei que estimula o desenvolvimento e o crescimento da atividade privada é sempre bem-vindo:
— A sociedade carioca e fluminense é carente de novos investimentos e oportunidades, em particular o setor imobiliário. É necessário que não só a Casa, mas também o Executivo olhe para o desenvolvimento da atividade.
Para o vereador Pedro Duarte (Novo), o projeto tem um aspecto positivo: facilitar a locomoção ao permitir a construção de moradias próximas ao comércio. Mas ele também faz críticas:
— O que eu acho ruim é essa dinâmica constante da prefeitura de só atualizar a legislação quando interessa ao caixa. Tudo é mediante arrecadação, mediante contrapartida. Em vez de cobrar para permitir algo, o que deveríamos ter é uma legislação de longo prazo. Caso se encontre falhas nessa legislação, que se corrija. E, se você vai construir dentro da legislação, não precisa pagar a contrapartida. Paga só a licença — diz.