Neste artigo, publicado originalmente no site “A Sociedade em Busca do seu Direito”, a professora e jurista Sonia Rabello destaca que o MPE RJ deu entrada na Justiça com uma Ação Civil Pública contra a forma que a Prefeitura da Cidade está propondo para “revitalizar” o Jardim de Alah.
“O cerne da argumentação do Ministério Público é o limite legal que proíbe que a Administração Municipal conceda o uso do Jardim de Alah a uma empresa comercial privada. O objeto do contrato não é a prestação de serviços de revitalização e gestão da área pública de uso comum do povo, como foi o caso da contratação da gestão de parques em São Paulo, como o Ibirapuera. O objeto do contrato é a concessão de uso do Jardim público, com o pagamento feito por serviços de `revitalização´, manutenção, e também pela exploração comercial do Jardim com lojas, restaurantes e até estacionamento subterrâneo”, afirma.
Urbe CaRioca
Jardim de Alah e a proibição legal de fazer a concessão, de Sonia Rabello
Sonia Rabello
O Ministério Público Estadual RJ (MPE RJ) noticiou que deu entrada na Justiça com uma Ação Civil Pública (ACP) contra a forma que a Prefeitura da Cidade está propondo para “revitalizar” um dos mais bonitos e charmosos Jardins Históricos da Cidade: o Jardim de Alah, situado entre os bairros do Leblon e Ipanema, na Zona Sul, em um dos metros quadrados mais caros do Brasil. Motivo de cobiça comercial?
Compreendendo a ação judicial e o direito dos cidadãos
O cerne da argumentação do Ministério Público (MPE RJ) na ação proposta é o limite legal, contido na Lei Orgânica do Município (LOM), que proíbe que a Administração Municipal conceda o uso do Jardim de Alah a uma empresa comercial privada, gostemos ou não do que diz a lei.
Não precisa ser jurista, advogado ou profissional do Direito para compreender a literalidade do art. 235 da Lei Orgânica do Município, a mais importante lei do Município:
Art. 235: As áreas verdes, praças, parques, jardins e unidades de conservação são patrimônio público inalienável, sendo proibida sua concessão ou cessão, bem como qualquer atividade ou empreendimento público ou privado que danifique ou altere suas características originais.
E, de acordo com o MPE RJ, o objeto da licitação e contrato municipal para o Jardim de Alah, segundo o que também está literalmente escrito no edital é: “a CONCESSÃO de uso e gestão, com encargos de revitalização, operação e manutenção da área municipal conhecida como Jardim de Alah”.
Quem não entende o bom português?
O objeto do contrato não é a prestação de serviços de revitalização e gestão da área pública de uso comum do povo, como foi o caso da contratação da gestão de parques em São Paulo, como o Ibirapuera. Aqui, inverteu-se: o objeto do contrato é a concessão de uso do Jardim público, com o pagamento feito por serviços de “revitalização”, manutenção, e também pela exploração comercial do Jardim com lojas, restaurantes e até estacionamento subterrâneo. Note-se que não está incluída, dentre as obrigações do concessionário, qualquer obra de ampliação da vazão do canal, elemento que entendemos essencial para que, talvez, se possa resolver a grave questão ambiental das águas da Lagoa Rodrigo de Freitas com o mar.
E mais. O MPE RJ ainda argumenta que outra lei municipal, a Lei nº 207 de 1980, que dispõe sobre administração de bens públicos municipais, limita a possibilidade de se ceder ou conceder bens públicos – aqueles que podem ser cedidos, obviamente, e que não é o caso dos parques, jardins e áreas verdes – a um prazo máximo de 10 (dez) anos.
Portanto, a Administração Pública municipal deve ser a primeira a dar o exemplo, e simplesmente cumprir a lei, já que os eleitos – prefeitos, governadores e até o presidente – podem muito, mas não podem tudo; suas opções administrativas e políticas não são ilimitadas, pois a lei fixa os limites de suas ações e decisões. É o que se chama princípio da legalidade, previsto no art. 37 da Constituição Federal:
Art.37: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)
Registre-se que a impossibilidade legal de se fazer esta concessão de uso da valorizadíssima área total do Jardim de Alah – mais de 76 mil metros quadrados -, por conta do art. 235 da Lei Orgânica do Município, já tinha sido argumentada, em juízo, na Ação Popular (AP), proposta por três cidadãos um mês antes.
Nesta ação (AP), a Juíza do feito primeiro entendeu pertinente os vários argumentos dos autores, e deu a liminar vetando a concessão. Depois, em face da contestação do Município, e do anúncio da empresa vencedora, ela entendeu que a ação teria perdido o interesse processual de agir, pois a empresa vencedora ainda iria apresentar todos os projetos para a área, e por isso extinguiu a ação.
Contudo, nesta sua decisão de extinguir a ação, a decisão nada mencionou sobre o art. 235 da Lei Orgânica do Município! Contudo, esta ação não está morta, pois desta decisão do Juízo de 1º grau cabe recurso ao Tribunal e, portanto, os desembargadores do Tribunal podem entender que esta ação popular deve prosseguir, e mandar voltar ao Juízo de 1º grau para decidir sobre seu mérito.
Há muita água para passar ainda pelo canal do Jardim de Alah. E estas águas passam pelo Judiciário que, por ora, já tem três ações judiciais que debatem a situação e o abandono do Jardim pelo Poder Público: a ação popular dos cidadãos e a ação civil pública do Ministério Público, ambas discutindo a legalidade da contratação de concessão de uso do área pública de uso comum do povo à uma empresa privada por 35 anos, e uma outra ação civil pública, também proposta pelo Ministério Público em 2018, cuja decisão da Justiça, não cumprida, já mandou o Metrô e a Prefeitura recuperarem aquela área, que deixaram deteriorar quando lá fizeram suas obras.
A ver como a Justiça vai ler a lei…
Artigo publicado no Jornal do Brasil em 23 de agosto de 2023