O Inepac e o convento, de Roberto Anderson

Neste artigo publicado originalmente no Diário do Rio, o arquiteto urbanista Roberto Anderson aborda importantes registros sobre Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, destacando que atualmente é preciso estarmos atentos para que os órgãos em defesa do patrimônio permaneçam atuantes e de pé.

“No Estado do Rio de Janeiro, o Inepac vem sendo desmontado, com a expulsão de técnicos que longamente o sustentaram, e sendo sido dirigido por pessoas absolutamente estranhas às questões do Patrimônio.”, afirma.

Urbe CaRioca

O Inepac e o convento

Publicado originalmente no Diário do Rio

Roberto Anderson

Foto: Roberto Anderson

Na década de 1980, depois de deixar uma acanhada sala na Lapa, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac estava instalado em sua simpática sede em Laranjeiras, na Rua Euricles de Matos. Seu orçamento nunca foi lá essas coisas, mas tinha independência para tomar decisões sobre como gerir o Patrimônio Cultural fluminense. E o fazia de forma inovadora, preservando bens que antes não eram percebidos como Patrimônio. Tinha também uma tradição de ser presidido por técnicos da área, em geral, arquitetos.

Essa sede do Inepac era um edifício art déco de três pavimentos, relativamente próximo do Palácio Guanabara, e mais próximo ainda do Palácio Laranjeiras. O edifício logo chamou a atenção da então primeira dama, D. Neusa Brizola, e foi requisitado para abrigar as suas obras sociais. Assim, o Instituto precisou empacotar tudo – pastas, livros, estudos – e móveis, incluindo várias mapotecas. Naquela época elas eram importantes para guardar plantas e mapas. O Inepac se mudou para um andar de um prédio no Castelo e, apesar de mal instalado, manteve sua independência.

Anos depois, a privatização do antigo Banerj deixou para o Estado do Rio o imóvel que sediava aquele banco, de autoria do arquiteto Henrique Mindlin. Seguindo o movimento de reunir a maior parte das secretarias estaduais num único imóvel, para lá foi o Inepac, um andar acima da Secretaria de Estado de Cultura. Era um excelente edifício, mas que, por falta de manutenção, anos depois se deteriorou terrivelmente. Muito depauperado, o edifício foi cedido à Alerj, para que o recuperasse e lá instalasse a sua nova sede.

Seguindo sua vida errante, o Inepac foi novamente despejado, ficando relegado a apenas uma seção da Secretaria de Cultura, instalada num andar do chique e retrofitado edifício que pertenceu à seguradora Sul América. Como era reduzido o espaço que lhe cabia, o Inepac não pode levar seus arquivos e mapotecas, deixados para apodrecer na sede abandonada da escola de dança Maria Olenewa. Como sabe abandonar imóveis o Estado do Rio de Janeiro! Posteriormente, a própria Secretaria foi despejada por falta de pagamento do caro aluguel, uma extravagância dos tempos do ex-governador Cabral.

Mas nada disso seria necessário. Há tempos o Inepac havia encontrado uma solução para resolver o problema da sua falta de sede: o antigo Convento do Carmo, na Praça XV, de propriedade do Estado do Rio de Janeiro, cedido à Universidade Cândido Mendes, sem grandes vantagens para o erário fluminense. Com toda a sua história e localização privilegiada, o edifício seria a sede perfeita para o Inepac.

Perseguindo esse objetivo, o Instituto conseguiu o retorno do imóvel à administração estadual. O desafio seguinte seria viabilizar financeiramente a sua restauração. Um acordo com a Procuradoria Geral do Estado, que necessitava de espaço para sua biblioteca, foi a solução encontrada. Mas um novo obstáculo se colocaria na frente do projeto da sede do Inepac. A Secretária de Cultura do governo Cabral decidiu entregar o espaço que caberia ao Inepac no convento aos arquivos do Museu da Imagem e do Som. Felizmente, o Iphan não aprovou o projeto, em função dos danos que tais arquivos pesados poderiam trazer à edificação histórica. O espaço, pelo qual tanto havia lutado, voltou então a ser destinado ao Inepac. E as obras de restauração do convento foram iniciadas, acompanhadas com todo zelo pelos técnicos do Instituto.

Diversas agradáveis surpresas ocorreram no desenrolar da obra. Foi descoberto, por exemplo, onde ficava o encaixe da passarela, que um dia havia conectado o convento ao Paço Imperial. O convento foi construído no século XVII por frades carmelitas, que foram obrigados a ceder o imóvel a D. Maria I, no início do século XIX. Foram também reveladas estruturas similares ao enxaimel em meio a paredes de taipa. E um tesouro arqueológico foi descoberto sob o piso do corredor do primeiro pavimento da edificação, uma raridade. Ocorre que o enchimento, entre o teto arqueado desse corredor no térreo e o piso do primeiro pavimento, foi feito com entulho do período colonial. Ali estavam, entre outros artefatos, fragmentos de louças, búzios, contas, moedas e cachimbos de barro.

Tudo parecia estar caminhando bem, mas o prestígio de um órgão de Patrimônio junto aos governos é algo raro. E sobreveio o golpe. A PGE, que havia sido convocada para ajudar a solucionar a questão financeira do restauro do edifício, que seria destinado ao Inepac, compartilhando sua ocupação, percebeu que havia oportunidade para jogar o sócio para escanteio. Com o incrível apoio da própria Secretaria de Estado de Cultura, à época sob o comando de um jovem lá colocado muito em função do prestígio de sua mãe junto ao ex-governador Witzel, o Inepac foi retirado do jogo. A partir daí a PGE ocuparia sozinha o imóvel que o Inepac tanto havia acalentado como sua futura sede. Adeus espaço cultural dedicado ao Patrimônio fluminense, adeus à possibilidade do Inepac exercer com mais dignidade a sua função constitucional.

Ultimamente, a defesa e a divulgação do Patrimônio têm sido severamente atingidas. No governo Temer, o Iphan foi alvo de tentativas de negociatas imobiliárias. No governo Bolsonaro o Iphan é palco da luta ideológica da direita retrógrada, assim como a Fundação Palmares e o Ministério da Cultura. No Estado do Rio de Janeiro, o Inepac vem sendo desmontado, com a expulsão de técnicos que longamente o sustentaram, e sendo sido dirigido por pessoas absolutamente estranhas às questões do Patrimônio. Hoje é preciso estar atento, e torcer para que esses órgãos permaneçam de pé, à espera de mudanças benfazejas de governo, que certamente virão.

Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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