Neste artigo, publicado originalmente no no site “A Sociedade em Busca do seu Direito”, a professora e jurista Sonia Rabello aborda a profunda contradição entre o discurso ambiental da Prefeitura do Rio e suas práticas recentes, destacando que embora o município divulgue com entusiasmo o novo programa de compensação ambiental — o chamado “Compensômetro” —, a medida soa mais como reação a uma longa série de decisões que provocaram danos significativos ao patrimônio natural e cultural da cidade.
“Casos emblemáticos como os do Jardim de Alah, Parque do Flamengo, Pão de Açúcar, Gávea e Jacarepaguá revelam um padrão recorrente: autorizações de cortes de árvores e projetos de alto impacto aprovados sem diálogo público adequado, sem estudos de impacto e à revelia das proteções legais. Sustento que medidas compensatórias, embora importantes, não substituem a preservação real nem corrigem danos irreversíveis, especialmente quando aplicadas após decisões já consolidadas. A desconfiança social decorre exatamente dessa inversão: em vez de planejamento transparente, participação pública e rigor técnico, a compensação aparece como justificativa tardia para intervenções contestadas. Para que o programa seja efetivo, é indispensável mudar o modelo decisório — garantindo coerência entre discurso e prática, respeito ao patrimônio ambiental e cumprimento das exigências legais de avaliação prévia”, pontua.
Urbe CaRioca
Prefeitura do Rio: Entre a motosserra e o Compensômetro
A crônica de uma contradição ambiental anunciada
Por Sonia Rabello – Link original

É difícil não notar a ironia. Depois de anos acumulando crises ambientais provocadas por decisões administrativas controversas — entre cortes de árvores em áreas públicas, privadas e até em áreas tombadas e projetos turísticos que avançam sobre patrimônio natural — a Prefeitura do Rio anuncia com pompa seu novo programa de compensação ambiental, celebrando-se como pioneira em transparência. Para muitos, soa menos como avanço e mais como tentativa de reorganizar os cacos deixados pelas próprias escolhas pretéritas e atuais. A contradição está posta: enquanto o discurso institucional veste verde, as práticas no território colecionam feridas abertas.
Os episódios do Parque do Flamengo (Marina da Glória), Jardim de Alah, do Pão de Açúcar e das aprovações de desmatamentos intensivos nos bairros da Gávea, Freguesia, Jacarepaguá, dentre outros, talvez sejam as expressões mais evidentes dessa lógica paradoxal. No paradigmático caso do Jardim de Alah, em um parque urbano público tombado e um jardim histórico integrante da paisagem carioca e mundial, a gestão municipal escolheu entregá-lo a uma empresa privada, com a promessa sedutora de sua revitalização.
Na prática, a “revitalização” implicou o corte de mais de cem árvores — a maioria adultas —, e a implantação de amplas estruturas comerciais, com lajes e perfurações que alteram profundamente o caráter hídrico, ecológico, ambiental e paisagístico da área. O resultado foi uma avalanche de resistência social, protestos, denúncias de especialistas e contestação jurídica.
As reações não foram gratuitas. O Jardim de Alah é um espaço público tombado em nível municipal e de tutela ambiental e cultural federal, cuja intervenção se deu em meio a críticas sobre falta de diálogo, insuficiência de estudos e atropelos no processo de licenciamento. Ações judiciais populares e do Ministério Público pediram ao Judiciário medidas para a suspensão das obras por risco de danos irreversíveis ao patrimônio público, revelando o altíssimo grau de insatisfação dos cidadãos com os procedimentos em nada participativos quanto a essas decisões sobre o patrimônio público. Ainda assim, a situação permanece sem atendimento sequer de perícias conclusivas ou de Estudos de Impacto Ambiental e de Vizinhança.
No Pão de Açúcar, os procedimentos administrativos foram os mesmos, porém amplificados pelo peso simbólico do local. Um dos maiores ícones naturais do Brasil, área pública da União Federal, integrante de Unidade de Conservação de Preservação Integral, e área integrante do Sítio Patrimônio Mundial pela Unesco, o Monumento tornou-se alvo de um projeto de tirolesas interligando seus morros.
A proposta, estritamente comercial, gerou forte mobilização social: moradores, ambientalistas, montanhistas e pesquisadores apontaram risco à vegetação nativa, perturbação à fauna, descaracterização e mutilação do Monumento Natural, cuja integridade geológica e paisagística é parte fundamental de sua importância. Protestos reuniram centenas de pessoas, uma petição superou dezenas de milhares de assinaturas e decisões judiciais chegaram a interromper etapas das obras. Em suma: mais uma iniciativa urbana que nasceu grande na ambição e pequena no cuidado ambiental, sem participação social, sem Estudos de Impacto Ambiental e sem Estudo de Impacto de Vizinhança.
A recorrência desses casos revela um padrão perturbador: decisões de grande impacto são tomadas antes de uma discussão pública consistente, e antes de avaliações ambientais suficientemente rigorosas.
O Rio, surpreendentemente, é uma das poucas capitais do Brasil onde a Prefeitura se recusa a fazer Estudos de Impacto de Vizinhança, previstos não só na Lei Federal do Estatuto da Cidade (arts. 36 e 37), desde 2001, como na sua Lei Orgânica Municipal (art.445), desde 1991! Quando o conflito emerge — e invariavelmente emerge — tenta-se então, construir narrativas supostamente corretivas. E é aqui que o programa de compensação ambiental entra em cena, anunciado como instrumento de avanço e transparência.
De fato, a criação do portal de medidas compensatórias — o chamado Compensômetro — é positiva, em teoria. Ele coloca sob escrutínio público Termos de Compromisso Ambiental, autorizações de supressão de vegetação e suas compensações exigidas de empreendimentos que afetam ecossistemas locais. Segundo as notícias oficiais publicadas no portal da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Clima, o Rio passou, felizmente, a sistematizar essas informações, para disponibilizá-las pela internet, ainda que tardiamente.
Mas aqui mora a contradição: compensar não é o mesmo que preservar, e a política de compensação ambiental corre o risco de virar vitrine de boas intenções, depois de danos já consolidados no território. Plantar mudas não devolve a complexidade ecológica de árvores maduras. Restaurar áreas degradadas em zonas periféricas não substitui a perda de cobertura verde em regiões que já sofrem pressão urbana. E muito menos compensações resolvem impactos irreversíveis sobre bens tombados ou monumentos naturais iconográficos. E nem mesmo sabemos quais elementos arbóreos “compensados” viverão ao final das décadas necessárias ao seu crescimento.
Medidas compensatórias são fundamentais na gestão ambiental contemporânea, mas têm limites claros. Elas funcionam quando são pensadas para impactos inevitáveis — não quando servem para corrigir decisões que poderiam ter sido evitadas com melhor planejamento, maior transparência ou mais diálogo com a população. Quando a compensação vira moeda de troca para viabilizar projetos de alto impacto, o princípio se inverte: o que deveria ser exceção vira justificativa.
Esse é o pano de fundo da desconfiança pública. Não se trata de rejeitar políticas de transparência, nem de negar a importância de instrumentos de mitigação ambiental. Trata-se de perguntar por que esses mecanismos aparecem após decisões que já colocaram em xeque a integridade de áreas sensíveis. Trata-se de questionar por que a população é chamada a participar depois (se é que é chamada), e não antes. E, sobretudo, trata-se de reconhecer que a proteção ambiental urbana exige coerência — não apenas no discurso, mas na origem das escolhas.
O Rio de Janeiro vive, assim, um momento crucial. O lançamento de um programa de compensação ambiental poderia ser uma virada institucional, mas só se vier acompanhado de mudanças reais: mais participação, mais rigor técnico, mais respeito ao patrimônio natural e menos decisões tomadas de forma verticalizada, e efetiva implantação dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e dos Estudos de Impacto de Vizinhança (EIV). O desafio não é preencher planilhas; é proteger ecossistemas e paisagens que dão sentido à cidade.
Enquanto essa coerência não se consolida, permanece a sensação de que o poder público tenta apagar incêndios que ele mesmo ajudou a iniciar — e que a cidade, entre motosserras e portais de dados, continua buscando, sem sucesso concreto, uma forma de conciliar desenvolvimento e preservação, mas ainda assim perde aquilo que a torna única: o seu patrimônio ambiental e cultural.
