Hugo Costa *
Em 27 de junho de 1978, uma palestra conduzida pelo técnico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, David Vetter, mostrava o resultado de sua pesquisa realizada sobre a Cidade do Rio de Janeiro entre 1975 e 1977 e declarava que a periferia carioca (os subúrbios, citando diretamente bairros de Ramos, Penha, Meier, Engenho Novo, Madureira, Irajá, Bangu, Santa Cruz, Campo Grande e Anchieta) pagavam mais Imposto territorial relativo que o núcleo da cidade (então descrita como os bairros de Botafogo, Copacabana, Ipanema, Lagoa, Tijuca e Barra da Tijuca), embora o núcleo recebesse mais investimentos derivados destes impostos.
A questão do imposto territorial relativo foi dada pela proporção do valor do metro quadrado taxado pela Prefeitura e o valor do metro quadrado do imóvel para o mercado imobiliário: enquanto nos subúrbios a taxação era feita em 70% do valor de mercado, no núcleo equivalia a apenas 50%. Já os investimentos no núcleo carioca eram demonstrados através de redes de esgotamento sanitário criados apenas no núcleo, enquanto os subúrbios nada recebiam.
Esta taxação diferenciada foi estudada e apresentada em 1978, 10 anos depois de muitas remoções (algumas com incêndios misteriosos) de comunidades carentes dos núcleos para os subúrbios, como por exemplo a Praia do Pinto no Leblon para os bairros de Cordovil e Vila Kennedy, Zonas Norte e Oeste respectivamente.
A Cidade Alta, projeto habitacional de 64 edifícios de 5 andares cada em Cordovil, que enfrenta problemas em segurança pública nos dias de hoje, foi um dos locais que acolheram os que eram oriundos das desapropriações em favelas do núcleo da cidade (basicamente da Zona Sul), e de acordo com o arquiteto responsável em entrevista recente, mostrava como os subúrbios eram tratados: após a mudança, seus moradores eram abandonados pelo poder público, enquanto o terreno original no Leblon virava um condomínio de alto luxo com as benesses recebidas identificadas por Vetter como investimentos.
Atualizando esta pesquisa de Vetter, resolvemos verificar a tabela da Planta Genérica de Valores (Tabela XVI A da Lei 268/2017) aprovada em 2017 pela Câmara dos Vereadores e sancionada pelo Prefeito do Rio, para verificar se a relação entre suburbios e núcleo persiste com o valor do metro quadrado taxado e o preço de mercado carioca. Utilizamos o valor de mercado publicado em um grande site de anúncios de comercialização de imóveis do Rio, no exato dia da sanção da lei.
Comparando o valor médio do metro quadrado de mercado e o valor médio taxado de cada logradouro dos bairros abaixo, chegamos as seguintes correlações para alguns bairros citados na pesquisa de 1978:
Depois dos investimentos citados na década de 70, a cidade teve outro forte ciclo de investimentos para as Olimpíadas Rio 2016 principalmente nas áreas publicas no citado núcleo da cidade, como as de mobilidade entre Ipanema e Barra da Tijuca por Metrô e as linhas de BRT que confluem também para a Barra da Tijuca, além de investimentos anteriores para a Copa do Mundo, como os piscinões contra enchentes da Tijuca.
Nesta amostra de bairros, observamos que não há mais a enorme discrepância de 1978, mas ainda há um relação incondizente entre os impostos das regiões e o local dos investimentos feito ao longo das décadas: os benefícios destes investimentos públicos nos bairros do núcleo são claros através do valor de mercado atingido, já que estas se tornaram, com estes investimentos, regiões mais desejadas em relação a outras do Rio, e por isto mais valorizadas. Nestas tabelas vemos que as áreas mais desejadas da cidade acabaram sendo também menos taxadas que as menos almejadas para aquisição de patrimônio, nos subúrbios. Quem tem um imóvel em Bonsucesso, que não recebeu investimentos públicos em décadas, é proporcionalmente mais taxado do quem mora em Botafogo, na Zona Sul, por exemplo.
O imposto em Bonsucesso é de 35% sobre o patrimônio imobiliário, enquanto em Botafogo é de apenas 24%.
Mais interessante se torna quando vemos o imposto enquanto mecanismo de gestão do território: o Plano Diretor do Rio de Janeiro (Lei Complementar 111 de 01/02/2011) indicava que o poder municipal deveria estimular ou assistir mais cariocas a morar nos subúrbios, e deveria controlar ou condicionar a moradia nos bairros de núcleo. Porém, ao observar a política tributária vê-se que não há mecanismos de estímulo ou assistência, com taxações mais altas em áreas que deveriam ser estimuladas que nas áreas dos investimentos públicos dos grandes eventos, feitos principalmente nas áreas controladas e condicionadas, justamente as que não deveriam ganhar estímulos em investimentos.
Importante observar que as regiões consideradas núcleos são menos populosas que os subúrbios, porém a cada indicativo de investimentos públicos, mais cariocas (que podem pagar) migram das áreas estimuladas e assistidas para as áreas controladas ou condicionadas, invertendo a lógica do Plano Diretor, e ainda intensificando mais o conceito de Cidade Partida e desigual.
Entre 2000 e 2010, famílias com renda de mais de 10 salários mínimos migraram dos subúrbios para as regiões que mais receberam investimentos públicos na cidade na década de 70 (Vetter) e depois para os grandes eventos.
Assim sendo, em duas perspectivas o IPTU se tornou um mecanismo não aderente às leis municipais: o imposto consegue ser relativamente mais caro onde deveria ser estimulada a ocupação, e, ao mesmo tempo, é um mecanismo de captação de recursos para incrementos urbanos onde a cidade deveria ter restrições, aumentando consideravelmente a desigualdade no território carioca. Quanto ao debate limitante sobre quem paga mais IPTU, segue-se a lógica de que, segundo os dados do IBGE, quase 65% dos cariocas moram nos subúrbios.
*Hugo Costa é geógrafo