OS SOCOS DO PREFEITO, ISTAMBUL, E A POLÍTICA URBANA


Muitos já escreveram sobre os socos que o prefeito desferiu no rapaz que interrompeu momentos de lazer do alcaide. Não cabe alongar o caso. O músico não tinha o direito de ofender e insultar o Chefe do Executivo, nem este de revidar as ofensas com socos. O primeiro reconheceu os insultos e o segundo desculpou-se com a população. Ponto final.


O que nos interessa é o motivo da discussão.


Conforme a imprensa, a indignação do ‘contribuinte’ deveu-se à política urbana praticada pela Prefeitura, que entende equivocada. Nota de esclarecimento divulgada pelo músico diz:


Nossa critica é contra um poder municipal que loteia NOSSA cidade, desapropria e expulsa os pobres, abrindo lugar para os ricos. Uma gestão de poucos, que vem promovendo, à revelia de muitos, uma violenta elitização do Rio de Janeiro – nitidamente vinculada à especulação imobiliária.
 Como não reagir a isso? São questões de NOSSA cidade, que afetam nossas vidas diariamente, e sobre as quais não conseguimos ser ouvidos. Estamos sendo aniquilados por um modelo de gestão autoritário e excludente. Impossível não se afetar. Impossível se calar, quando temos a chance de ser ouvidos”.

O jornal NYT, comentando o lamentável episódio, utiliza o termo ‘gentrification’: “[the constituent]…said he had directed his scorn at Mr. Paes because he believed that the mayor’s policies were benefiting a select group of real estate speculators and contributing to gentrification ahead of the 2014 World Cup and 2016 Summer Olympics…”. A notícia na íntegra pode ser lida neste link.



Segundo a Wikipédia ‘chama-se gentrificação, uma tradução literal do inglês “gentrification” que não consta nos dicionários de português, a um conjunto de processos de transformação do espaço urbano  que, com ou sem intervenção governamental, busca o aburguesamento de áreas das grandes metrópoles que são tradicionalmente ocupadas pelos pobres, com a consequente expulsão dessas populações mais carentes, resultando na valorização imobiliária desses espaços’.


cristovao1.wordpress.com

Ou seja, o tema que provocou a reação do Prefeito foi a Política de Urbanismo. Nada sobre hospitais, escolas, desordem pública, transportes, o dia a dia da cidade… Muito embora todos esses tópicos enquadrem-se em ‘urbanismo’ -, o alvo do protesto foram as decisões que produzem efeitos a médio e longo prazos e que podem durar décadas ou séculos: transformações urbanas e o uso do solo!




Pouco tempo depois o noticiário internacional dá conta dos distúrbios na Turquia que crescem a cada dia – as manifestações contra o governo que se espalharam por várias cidades. Curiosa e infelizmente o estopim da revolta aconteceu em função da derrubada de árvores em uma praça vizinha a um parque público, em Istambul, para a construção de um shopping-center!  Por óbvio os motivos da revolta são mais abrangentes e envolvem aspectos político-culturais complexos. Mas, vieram à tona quando da agressão a um espaço público, propriedade do povo, de fato, para seu uso, gozo e fruição, destinatário final que é dos espaços públicos: a Praça Taksim, no Parque Gezi, no coração da cidade.

Impossível não nos lembrarmos da Praça N. S. da Paz e da construção de empreendimento comercial  no Parque do Flamengo proposta com o apoio governamental.

A quem interessar, relatos importantes estão em What is Happening in Istambul? e em O Véu, o Álcool e a Mini-saia, da jornalista Helena Celestino

Wikimedia



Voltando à urbe carioca, em 27/05/2013 arquitetos e urbanistas reuniram-se para o debate Uma cidade em transformação: intervenções urbanas no Rio de Janeiro.


Vale conhecer o resultado do encontro relatado no blog RioReal criado pela jornalista e escritora americana Julia Michaels: além de comentários gerais sobre as discussões, a autora exalta a qualidade do debate – em suas palavras ‘difícil haver uma troca tal como a desse encontro’ –  e lista as sete principais críticas apontadas sobre a política urbana que vem sendo adotada no município do Rio de Janeiro.


Os últimos acontecimentos demostram que movimentos pela gestão democrática da cidade que nasceram na década de 1980, e perderam força ao longo do tempo, estão de volta. A voz da sociedade civil – prevista nos Planos Diretores de 1992 e 2010, na Lei Orgânica do Município e no Estatuto da Cidade, tem se feito ouvir.

Exemplos estão nas manifestações contra a devastação da Praça Nossa Senhora da Paz em nome de uma decisão errada sobre as prioridades no traçado do Metrô; na corrente que se formou contra a demolição do prédio do antigo Museu do Índio  suspensa depois de ter sido autorizada pelo Prefeito; na luta para impedir a diminuição da Área de Preservação Marapendi e o uso de áreas públicas para a construção de um campo de golfe; nas ações judiciais e movimentos de associações de moradores decididos a garantir a proteção do Parque do Flamengo/Marina da Glóriaprevista em lei, e impedir a construção de um Centro de Convenções e Shopping-Center no parque público; no abraço ao prédio e na missa celebrada em intenção da preservação do Quartel General da PM que tem 200 anos de História; nas discussões sobre o Píer da Zona Portuária.


E, ainda, na organização de encontros institucionais e acadêmicos; e nos inúmeros abaixo-assinados que questionam decisões prejudiciais ao meio ambiente, ao patrimônio cultural e ao uso do solo.


Praça N. S. da Paz – O Globo


Perdemos a verdadeira Linha 4 do Metrô e as árvores centenárias da praça tombada em Ipanema. Perdemos a marquise do Maracanã. Perdemos o Autódromo para o mercado imobiliário. Perdemos o Velódromo frente à incredulidade do arquiteto que o projetou para os Jogos Pan-americanos de 2007. Recursos públicos são cinicamente rasgados em situações escandalosas, diante da população perplexa com tal desfaçatez!


Mas, foram batalhas. Outras prosseguem, outras virão. São bons combates.

Antes de ser patrimônio da humanidade a Cidade do Rio de Janeiro é patrimônio dos seus habitantes. Respeitá-la é dever de todos, mais ainda dos que foram escolhidos para geri-la.


O urbanismo saiu dos gabinetes e dos redutos de especialistas. Agora, finalmente, é tema dos cariocas.


Civilizadamente. Pacificamente. Sem socos.


Protestos contra a devastação da Praça N.S. da Paz
Imagem: PUC-Digital


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