A função social da Praça São Salvador, de Vinicius Monte Custódio

No fim do mês de abril divulgamos a matéria “Prefeitura do Rio proíbe uso de caixas de som na Praça São Salvador, em Laranjeiras”, na qual destacamos que, após várias polêmicas ao longo dos últimos anos, a Prefeitura do Rio havia publicado no Diário Oficial um decreto que vedava o uso de equipamentos de som, incluindo os de pequeno porte e potência, para fins de apresentação de artistas de rua na Praça São Salvador e em suas redondezas. O objetivo seria atender uma antiga demanda dos moradores que reclamam do ruído excessivo causado por festas, rodas de samba e muitas apresentações até altas horas da madrugada na praça.

O advogado Vinicius Monte Custódio, em artigo publicado originalmente no Diário do Rio e reproduzido abaixo, contesta o decreto, critica a proibição da Prefeitura e apresenta uma visão distinta baseada na análise de outras leis vigentes.

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Custódio: A função social da Praça São Salvador

Vinicius Monte Custódio

Link original

(Foto: Oscar Valporto)

A Praça São Salvador, localizada no bairro de Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro, é um reduto da boemia carioca, com diversos bares e restaurantes em seu entorno. A praça pública é um ponto de encontro de moradores do bairro, bem como de pessoas de outros cantos da cidade, que se dirigem até lá para rever velhos amigos e também fazer novas amizades.

Semanalmente, no coreto da “Sansalva”, como a praça é chamada pelos íntimos, eram realizadas apresentações artísticas de vários gêneros musicais: forró pé-de-serra (terças-feiras à noite); jazz (quintas-feiras à noite); samba (sábados à tarde); chorinho (domingos de manhã); e forró de rabeca (domingos à noite). As apresentações eram pacíficas e democráticas, remuneradas de forma voluntária pelo público, que era composto de todas as faixas etárias. Além disso, as apresentações no período noturno se iniciavam à volta das 19h00 e se encerravam religiosamente às 22h00, sem direito a bis.

Não obstante isso, em 25 de abril de 2022, o Prefeito Eduardo Paes editou o Decreto nº 50.687, que condicionou o uso de equipamentos de amplificação sonora, inclusive de pequeno porte e potência, para fins de apresentação artística na praça e nas redondezas à observação das normas do Decreto nº 49.462, de 21 de setembro de 2021, que dispõe sobre a autorização de eventos em áreas públicas e particulares no município do Rio de Janeiro.

O preâmbulo do Decreto nº 50.687/2022 afirma existir um “grande número de queixas e reclamações, por parte de moradores das proximidades […], quanto a incômodos provocados por atividades musicais e práticas que acarretam emissões sonoras, aglomerações excessivas e outros danos no referido logradouro” e que “é dever do Poder Público garantir que as condições ambientais da praça, sobretudo no que concerne à prevenção de emissões sonoras inconvenientes e formação de aglomerações excessivas, sejam permanentemente preservadas, com vistas ao bem-estar da vizinhança e da coletividade”.

A atitude tomada pelo Poder Executivo é injustificável pelos mais variados motivos.

Em primeiro lugar, a Constituição da República garante que “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

A Constituição não faz distinção acerca da finalidade da reunião, ela apenas precisa ser pacífica e sem armas. A única restrição que a Constituição faz ao exercício dessa liberdade fundamental é o prévio aviso à autoridade competente, para que o exercício da liberdade de reunião de um grupo não frustre o de outro.

No mesmo sentido, a Lei nº 5.429, de 05 de junho de 2012, determina que a apresentação de artistas de rua nos logradouros públicos — gênero que contempla as praças públicas — do município do Rio de Janeiro independe de prévia autorização dos órgãos públicos municipais, bastando ao responsável pela manifestação informar à Região Administrativa o horário de sua realização.

O Decreto nº 49.462/2021, para driblar a Constituição e a referida lei municipal, definiu que basicamente qualquer atividade temporária que reúna pessoas é um evento. Assim, por meio desse malabarismo retórico, tentou dar um verniz de juridicidade a uma exigência completamente inconstitucional e ilegal, que é exigir autorização para que pessoas se reúnam pacificamente em locais públicos.

E o pior: não bastasse a burocracia antijurídica, o decreto ainda prevê o pagamento de taxa de uso de área pública! Ou seja, a Prefeitura cria dificuldade para vender facilidade, sem sequer distinguir entre usos com e sem finalidade econômica.

Em segundo lugar, o próprio Plano Diretor do Rio de Janeiro, ao tratar dos espaços públicos, expressamente reconhece que as praças “são bens de uso comum do povo afetados à circulação de pessoas e à convivência social”. Portanto, elas só se justificam urbanisticamente se servirem como espaços gregários, de reunião de pessoas.

Via de regra, as praças públicas são uma contrapartida urbanística imposta pelo Município para a aprovação de projetos de loteamento, visando garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, entre estas a circulação e a recreação. Não faz o menor sentido o Município exigir essa contrapartida e depois embaraçar a reunião de pessoas, sob o falso argumento do exercício do poder de polícia.

Desde quando passamos a admitir que aglomerações de pessoas em áreas públicas devem ser coibidas? Por acaso, estamos em estado de sítio? Ainda que aceitássemos o argumento de que aglomerações excessivas devem ser coibidas, qual é o parâmetro utilizado pela Prefeitura para definir o que é uma aglomeração excessiva? É o “olhômetro” dos fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública e dos Guardas Municipais?

Em terceiro lugar, se é inegável que muitos moradores do entorno da praça reclamavam diuturnamente do barulho gerado pelas apresentações artísticas com amplificação sonora, por outro lado, é igualmente inegável que muitos outros moradores do entorno da praça são entusiastas daquelas manifestações culturais. Sendo assim, por qual razão o Poder Público haveria de acolher apenas o interesse de um único grupo em detrimento do outro?

Evidentemente todo cidadão que mora ao redor da Praça Salvador tem direito ao sossego, mas não existem direitos absolutos. Assim como esses moradores têm direito ao sossego, os demais também têm direito ao lazer e a se expressarem livremente, inclusive por meio de música amplificada. Diante de um conflito de interesses legítimos como esse, a solução passa pela concordância prática dos interesses envolvidos, buscando soluções proporcionais que atendam a cada um deles na máxima medida do possível.

Justamente por isso que a Lei nº 5.429/2021 restringiu a quatro horas a duração máxima das manifestações culturais de artistas de rua e o horário de encerramento das apresentações às 22h00. E isso era rigorosamente cumprido pelos músicos, até porque um destacamento da Guarda Municipal sempre se postava próximo do coreto para garantir que a música não ultrapassasse o horário legal.

Quem decide morar num imóvel ao redor de uma praça pública há de saber que, por se tratar de espaço vocacionado ao convívio social, se sujeitará a um nível de ruído ambiental mais elevado do que habitualmente ocorre nas ruas de um bairro. Faz parte da função social das praças públicas reunir o povo.

Todavia, ao mesmo tempo em que esse morador perde em sossego, ele ganha em segurança pública. A menos de 300 metros dali, no início da rua homônima, existe outra praça, que, assim como a São Salvador, é dotada de um parquinho infantil ao qual nenhum genitor ousa levar suas crianças para brincarem à noite. Por ser desocupada, exceto por pessoas em situação de rua, essa praça simplesmente não traz a mesma sensação de segurança da Praça São Salvador.

Esvaziar a Praça São Salvador é um tiro que sairá pela culatra, pois acarretará o aumento da criminalidade no local, hoje, felizmente, ainda um local seguro, diferentemente de outros espaços públicos da cidade.

Em quarto lugar, é inócuo criar entraves à realização de música com amplificação, como forma de prevenir “emissões sonoras inconvenientes” e “aglomerações excessivas”, uma vez que o funcionamento dos diversos bares e restaurantes ao redor da praça — com licença de estabelecimento expedida pela mesma Prefeitura, diga-se — atraem e concentram pessoas, muitas das quais ébrias, até de madrugada.

Ademais, o Decreto nº 50.687/2022, ao restringir apresentações artísticas com amplificação sonora acaba por ignorar diversos instrumentos musicais acústicos que são igualmente ruidosos, como tambores, trombones e baterias. Logo, o próprio regulamento administrativo é míope e mal formatado para atingir o resultado a que ele mesmo se propõe.

E em último lugar, mas não menos importante, o afluxo de pessoas causado pelas apresentações artísticas na Praça São Salvador potencializa a circulação de riqueza no comércio circundante, a geração de renda e a arrecadação de impostos na região, além de garantir a manutenção de diversos postos de trabalho.

É de se estranhar que um prefeito tão afeito à boemia e com tanta identificação com a cidade do Rio de Janeiro tenha autografado um decreto tão ofensivo a um dos símbolos mais democráticos da cultura carioca que são as apresentações artísticas da Praça São Salvador. Espero que o Prefeito Eduardo Paes reveja os Decretos nos 49.462/2021 e 50.687/2022, pois a liberdade de reunião para fins pacíficos não se sujeita a autorização do Poder Público.

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Vinícius Monte Custódio é doutorando em Direito Econômico e Economia Política na Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Urbanístico e Direito Ambiental pela Universidade de Coimbra. Advogado. Conselheiro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.

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