Associação de Moradores do Jardim Botânico contra a desordem no Parque Lage, de Vinícius Monte Custódio

Parque Lage, Jardim Botânico, Rio de Janeiro
Imagem: Internet

Em 1957, o Parque Lage foi tombado pelo IPHAN e, em 1976, foi adquirido pela União mediante desapropriação. Pelo Dec. Federal s/n de 25/04/1991, a União autorizou a cessão de uso gratuito do bem ao Estado do Rio de Janeiro pelo prazo de dez anos, prazo prorrogado por sucessivos atos administrativos do Governo Federal, para ser utilizado como sede da Escola de Artes Visuais – EAV da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro.

Apesar de os atos autorizativos explicitamente vincularem a utilização do imóvel pelo cessionário à finalidade de educação e expressão artísticas, ele vem sendo empregado em diversos eventos sociais alheios ao escopo institucional da EAV — tais como festas de aniversário, casamento e formatura, festivais de música, eventos corporativos etc. — como forma de arrecadar receitas para a manutenção do espaço. Todavia, conforme a Lei de Bens Imóveis da União, o desvio de finalidade é causa de nulidade imediata da cessão de uso, pelo que a União já deveria haver retomado a posse do bem.

Ademais, em razão de o Parque Lage integrar o Parque Nacional da Tijuca – PNT, os referidos eventos sociais ainda ofendem a Lei do Sistema Nacional das Unidades de Conservação. Isso porque este diploma legal só admite em unidades de conservação de proteção integral, das quais os parques nacionais são espécie, o uso indireto de recursos naturais, ou seja, “aquele [uso] que não envolve consumo, coleta, dano ou destruição”.

Somado a isso, o plano de manejo do PNT não permite a utilização de aparelhos ou instrumentos sonoros coletivos dentro do PNT, exceto no interior das edificações, conforme normas específicas; seu uso externo somente é permitido em eventos e casos excepcionais, mediante autorização do ICMBio, em conformidade com o parecer dos técnicos do PNT. O plano também prescreve que “a utilização de equipamentos sonoros em ambiente externo só será permitida em eventos de pequeno porte com baixo nível de ruído.” Nada obstante, diversos eventos foram realizados na área externa do PNT, sob a gestão da EAV, sem sequer consultar o ICMBio.

Tampouco o IPHAN, que é responsável pela proteção e preservação do patrimônio cultural nacional, especialmente de bens tombados, foi consultado nessas ocasiões, a despeito da existência de norma expressa em tal sentido no Dec.-Lei nº 25/1937.

Por essa razão, a Associação de Moradores do Jardim Botânico – AMA-JB ajuizou ação civil pública* em face do Estado do Rio de Janeiro e da União Federal em abril de 2016 (e posteriormente incluindo o ICMBio), pleiteando tutela antecipada para que se proibissem imediatamente quaisquer eventos sociais estranhos à finalidade institucional da EAV, tais como festas de aniversário, casamento e formatura, festivais de música, eventos corporativos etc., a nulidade da cessão de uso gratuito do Parque Lage para reverter o bem à União e, ao fim, caso indeferido o pedido de nulidade da cessão, a ratificação da proibição dos aludidos eventos sociais.

Apesar de o Direito Ambiental ser informado pelo postulado da prevenção, que inverte o ônus da prova em desfavor do promotor da atividade potencialmente lesiva ao ambiente, a juíza substituta indeferiu o pedido de tutela antecipada, sob a alegação de que “não restou sobejamente comprovado nos autos que a realização de eventos no conjunto arquitetônico do Parque Lage tenham causado quaisquer danos ao bem tombado”.

Nessa linha, criticando a decisão judicial, o Ministério Público Federal – MPF assim se manifestou:

Em que pese a decisão que indeferiu a liminar, é visível que a narrativa apresentada pela inicial, na qual se reporta a ocorrência de danos a partir do impacto sonoro dos eventos, é pelo menos verossímil. Se o impacto sonoro dos eventos é suficiente para incomodar os residentes do entorno do Parque Lage, é razoável supor que cause impactos ao meio ambiente.

O Parque Nacional, não custa lembrar, é Unidade de Conservação que visa à proteção integral, conceito que pressupõe a “manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana (…)” (art. 2º, VI, da Lei 9.985/2000). Ademais, o direito protetivo do meio ambiente natural e cultural se orienta segundo os princípios da precaução e da prevenção, o que, entre outras coisas, transfere ao promotor da atividade potencialmente poluidora a responsabilidade de comprovar suas atividades são compatíveis com o grau de proteção dessa unidade.

Ao longo da instrução processual, as ilegalidades perpetradas pelo Estado do Rio de Janeiro ficaram comprovadas, inclusive havendo o ICMBio expressamente relatado em sua contestação que “a maioria dos eventos no Parque Lage ocorreu sem qualquer consulta, análise técnica ou anuência da chefia do Parque Nacional da Tijuca, que acaba tomando ciência dos mesmos em momento posterior à sua realização”.

Noutro parecer, afirmou o MPF que:

O Plano de Manejo e o Termo de Cessão de Uso Gratuito (fls. 257-260) são genéricos. Não obstante, a melhor interpretação é a de que os eventos “exclusivamente privados” ou “exclusivamente comerciais” não são condizentes com a função ambiental/cultural do bem. Eventos “exclusivamente privados ou comerciais” são aqueles que excluem a coletividade do acesso ao bem (casamentos, festas de aniversário, lançamento de produtos, etc.).

Em novo parecer, o MPF reiterou que:

[O] Plano de Manejo especifica as atividades que podem ser permitidas, ressaltando que estas devem ter relação de causa e efeito com os objetivos da Unidade de Conservação. Outrossim, prevê que exceção pode ser feita, para demais eventos de caráter cultural, científico, esportivo e educativo, desde que não causem danos ao patrimônio natural, histórico e cultural da unidade, devidamente analisados pela equipe técnica e mediante autorização expressa por escrito da chefia do Parque.

Sendo assim, não é possível concluir que o Plano de Manejo não veda a realização de eventos privados ou de caráter comercial no Parque. A realização de eventos de caráter cultural ou educativo já são considerados excepcionais. Não há nada no Plano de Manejo que permita estender essa exceção para eventos privados e de caráter comercial. Ademais, como se sabe, as normas que estabelecem exceções devem ser interpretadas restritivamente. Afinal, não podemos transformar a exceção em regra.

O MPF pediu em três ocasiões distintas a “concessão da tutela antecipada, para que não fossem marcados eventos exclusivamente privados que não sejam de cunho beneficente, como casamentos e aniversários, nem exclusivamente comerciais, mantidos os eventos já marcados para evitar prejuízos a terceiros de boa-fé”.

Na audiência de conciliação, em maio de 2017, o MPF propôs a suspensão do processo por 90 dias, para que as partes trabalhassem extrajudicialmente num termo de ajustamento de conduta (TAC) para repactuar a realização de eventos no Parque Lage. Porém, durante as tratativas de conciliação, o MPF apresentou uma minuta de TAC, conflitante com suas manifestações processuais anteriores, que possibilitava a realização de eventos de “caráter comercial e/ou corporativo”, desde que autorizados pela Chefia do PNT/ICMBio, mediante requerimento submetido com antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias pelo interessado. E o ICMBio alterou a proposta de TAC do MPF de proibir “festas de aniversário, casamentos, formaturas, batizados e demais eventos congêneres de caráter exclusivamente particular”. Eles passariam a ser possíveis desde que, mediante requerimento encaminhado com antecedência mínima de 45 dias, autorizados pelo ICMBio.

Em seguida, a AMA-JB aportou sua versão de TAC e, constatando o distanciamento entre as propostas apresentadas e um possível acordo, chamou a atenção das corrés para o fato de que uma conciliação não é uma submissão, mas um processo de concessões mútuas. Além disso, esclareceu que algumas ideias alvitradas continham vícios de legalidade, como a ideia de estabelecer uma cláusula intermediária de multa antes da medida drástica de anulação da cessão de uso.

Sem acordo, o MPF relatou ao Juízo os fatos ocorridos durante a suspensão processual e, mudando seu entendimento até então, defendeu que:

As supostas restrições a determinados tipos de eventos no Parque Lage decorreriam, justamente, da sua não previsão, de forma expressa, no Termo de Cessão e no Plano de Manejo do PARNA Tijuca. As respectivas redações, portanto, omitem a permissão para determinados tipos de eventos, mas tampouco os vedam expressamente.

Em outubro de 2017, o ICMBio informou que não concluíra o acordo e pediu suspensão do processo por mais 60 dias para que o Estado do Rio de Janeiro ratificasse o termo aditivo ao termo de cessão de uso. Por se tratar de medida procrastinatória e inteiramente desnecessária, já que o regular andamento processual em nada obsta a celebração do ato administrativo em questão, além do fato de a própria validade jurídica do termo de cessão de uso gratuito e de seu aditivo, bem assim a continuidade da gestão do Parque Lage pelo Estado do Rio de Janeiro, estarem em xeque, a AMA-JB pediu o indeferimento da suspensão. Ato contínuo, a AMA-JB requereu o deferimento de tutela antecipada para proibir, ao menos, a realização de eventos exclusivamente privados ou comerciais no Parque Lage, pois os três pedidos de antecipação de tutela anteriores formulados pelo MPF não foram apreciados.

A suspensão do processo por mais 60 dias foi deferida em março de 2018, o que representa um intervalo de tempo maior do que o dobro, precisamente 136 dias. Apenas para se ter uma ideia da falta de razoabilidade dessa suspensão processual, se o pedido fosse deferido na data do protocolo da petição, o prazo de suspensão já se teria encerrado. Ademais, num exemplo didático daquilo que se convencionou chamar de jurisprudência defensiva, o novo pedido de antecipação de tutela foi outra vez denegado, sob o fundamento de que os danos não ficaram comprovados ao longo da marcha processual e de que já existem “tratativas em curso para definição da destinação e usos permitidos do Parque Lage”. Malgrado todos os argumentos expendidos pela AMA-JB sobre o postulado da prevenção e sobre a existência de danos de índole retardada e danos desencadeados por impactos ambientais cumulativos, assim como em relação à legalidade das tratativas correntes, essas alegações foram solenemente ignoradas pela decisão.

Vinícius Monte Custódio, advogado da AMA-JB

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*Dados sobre o processo judicial:

Processo nº 0061401-69.2016.4.02.5101
8ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro

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