Em continuidade aos posts “Sempre o Gabarito – Buraco do Lume é a bola da vez” e “Buraco do Lume – Por Brasiliano Vito Fico”, neste artigo, publicado originalmente no site “A Sociedade em Busca do seu Direito”, a professora e jurista Sonia Rabello destaca a questão do Projeto de Lei Complementar, recentemente enviado pela Prefeitura do Rio à Camara Municipal no qual propõe alterar os índices de edificação do suposto terreno privado, no Centro, “para atribuir-lhe, gratuitamente, uma edificabilidade que poderá alcançar até quatro vezes a sua área. Isto se chama de `enriquecimento sem causa´. Pode o alcaide da cidade abrir mão do patrimônio público de uso comum do povo ? E a área de preservação cultural no seu entorno ? “, questiona. Vale a leitura.
Urbe CaRioca
Buraco do Lume: qual o seu negócio? Para quem?
Sonia Rabello
Uma das questões mais nebulosas que envolvem as prefeituras brasileiras é a doação, aos proprietários de imóveis, de índices construtivos públicos cujo preço no mercado é de milhões de reais.
Nada materializa mais este caso, no momento, do que a recente proposta da Prefeitura do Rio de alterar os índices de edificação do suposto terreno privado, localizado na Praça Mário Lago, no Centro do Rio, para atribuir-lhe, gratuitamente, uma edificabilidade que poderá alcançar até quatro vezes a sua área (Projeto de Lei Complementar 128/2019).
Isto se chama de “enriquecimento sem causa”, vedado pelo art. 884 do Código Civil que diz:
“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.”
Duas questões fundamentam esta proposta escandalosa, à luz do interesse público:
A primeira questão é que o terreno ao qual se pretende dar gratuitamente ao atual proprietário (cujo nome é escondido da população, provavelmente por vergonha …), já é provavelmente público. Não há mais imóvel privado. Só formalmente no Registro de Imóveis. Mas, esta formalidade foi ab-rogada pela usucapião pública da praça lá localizada na integralidade do terreno deste seu aterramento nos anos 80 pelo prefeito Kablin, em função do abandono e desídia do antigo proprietário; praça esta, desde então, de uso comum do povo, e oficialmente designada como logradouro público. Incontestável e incontestada situação pública de logradouro público.
Se assim for, o alcaide da cidade não pode abrir mão de patrimônio público de uso comum do povo, sob pena de improbidade administrativa.
A segunda questão é que, ainda que o terreno, por suposição, fosse privado, a intensidade de seu uso estaria já designada pelo Decreto 6159/86, compatível com a área de preservação cultural no seu entorno, qual seja:
“Será permitida somente a implantação de equipamentos destinados a atividades culturais, quais sejam: cinema, teatro, biblioteca e livraria. (…) será permitida somente uma edificação com altura máxima de 17,00m (dezessete metros) incluindo-se nesta altura qualquer elemento construtivo acima do nível do solo. (…) será obrigatória a existência de pilotis, ocupando o total da sua projeção com altura mínima de 6,00m (seis metros), a ser computada na altura máxima permitida para a edificação. (…) A área livre mínima obrigatória para as edificações situadas no lote mencionado no art. 1º será de 60% (sessenta por cento) não podendo ser ocupada para fins de estacionamento de veículos.”
Então, se o misterioso novo proprietário comprou este suposto terreno privado abandonado, convertido em praça desde a década de 80, com estes usos estabelecidos no decreto 6159/86, por que será que o alcaide da Cidade quer presenteá-lo, depois da sua compra, e gratuitamente, com vários milhões de reais consubstanciados em índices construtivos públicos? Quem seria este beneficiário de tanto dinheiro público ao qual se pretende dar gratuitamente?
Rio, qual o seu negócio? Confia em mim…