As diuturnas articulações e os tortos caminhos percorridos nas ações políticas no Rio de Janeiro, muitas vezes na contramão dos verdadeiros interesses da sociedade e do futuro da Cidade rubricaram de forma perniciosa diversas alegações descabidas que buscaram de forma insistente nortear as “providências necessárias” para justificar ilegalidades urbanísticas nas últimas décadas. As tentativas de tornar esse espaço de fala em que se naturaliza a construção além de gabaritos fixados por lei, acontecem e se repetem diariamente. Conforme já levantado, paga-se para legalizar o fora-da-lei, paga-se antecipadamente para construir fora-da-lei.
Agora, diante do fatídico terremoto que atingiu a Turquia e a Síria, deixando milhares de mortos, conforme divulgado na grande mídia, acirra-se o debate sobre até que ponto a arquitetura turca, que já viveu outros violentos abalos sísmicos, pode ter contribuído para potencializar a catástrofe. A notícia reproduzida abaixo (Jornal O Globo, 09/02/2023) informa que em 2018, as construções ilegais do país foram “anistiadas” e puderam tirar licenças sob o pagamento de uma taxa ao governo, sem se adequarem ao código de construção turco. A decisão possibilitou a arrecadação de cerca de US$ 3 bilhões (R$ 15 bilhões) para o governo. Na época, arquitetos e urbanistas turcos alertaram que o licenciamento retroativo desses edifícios — alguns com mais andares do que na planta original — poderia ter consequenciais fatais.
No Rio de Janeiro, as obras ilegais regularizadas com mais-valia (concluídas ou a construir), via de regra não apresentam esse tipo de problema, pois predominam nas áreas ditas ‘formais’ e são executadas em bases profissionais. Todavia, as milhares de construções existentes nas favelas, loteamentos irregulares ou clandestinos, margens de rios e lagoas e nas encostas em geral – também irregulares e ilegais – recebem o aval tácito das autoridades, tanto pela permanência durante décadas quanto pela tolerância e conformismo em relação à expansão das mesmas. Fora uma ou outra demolição executada pelo Poder Público em tempos recentes, é situação enraizada. Não mudará. Justificativas diversas – sejam questões sociais, políticas, incapacidade de aplicar a lei, ou o desrespeito generalizado à mesma – não faltam.
Se o Brasil foi poupado de terremotos, temos chuvas torrenciais, alagamentos, deslizamentos de encostas e rios que transbordam: intempéries que também levam vidas, especialmente em áreas de risco ocupadas irregularmente. Afastadas as devidas proporções, entre a realidade turca e o descaso com o urbanismo na Cidade do Rio, é possível observar-se muitas tristes e reflexivas semelhanças. Infelizmente.
Toda a nossa solidariedade às vítimas da tragédia na Turquia e na Síria. Que os sobreviventes encontrem algum conforto, se possível.
Urbe CaRioca
Estruturas antigas e autorizações ilegais: como arquitetura da Turquia potencializou impacto do terremoto
Governo de Erdogan permitiu que edifícios ilegais tirassem licenças retroativas sem se adequarem ao código de construção do país
Por O Globo — Ancara
Conforme o trabalho das equipes de resgate avança, mais e mais mortos são encontrados debaixo dos escombros dos edifícios que não resistiram ao terremoto de 7,8 de magnitude que devastou o sudeste da Turquia e o norte da Síria na segunda-feira. O tamanho da tragédia, porém, acendeu o debate sobre até que ponto a arquitetura turca — que já viveu outros violentos abalos sísmicos no passado — pode ter contribuído para potencializar a catástrofe.
Desde 1999, quando um terremoto atingiu a cidade de Izmit, no noroeste da Turquia, deixando mais de 17 mil vítimas, o país adotou um novo código para regulamentar as construções e evitar que tragédias como aquela se repetissem.
Segundo as normas turcas, edifícios construídos sob a nova regra são obrigados a adotar uma estrutura resistente a sismos. No entanto, em um lugar onde mais da metade dos prédios foi construída ilegalmente e muitos foram levantados há mais de 20 anos, o cenário visto na segunda-feira trouxe um desagradável dejà vú.
Embora especialistas tenham apontado que seria impossível evitar um terremoto dessa gravidade, em razão do seu tipo e profundidade relativamente rasa da superfície da Terra, a forma como grande parte das construções desabou evidencia problemas graves nas estruturas.
O geólogo e especialista em gestão de desastres da Universidade de Bournemouth, Henry Bang, explicou ao jornal inglês The Guardian os desabamentos:
— Aqueles [edifícios] cujas paredes desmoronaram são provavelmente muito antigos, construídos com materiais relativamente mais fracos — explicou. — Os edifícios de [vários] andares que desabaram como um maço de cartas provavelmente não foram construídos com estruturas resistentes a terremotos — concluiu.
Seguindo o mesmo raciocínio, o professor de sismologia na Universidade de Edimburgo, Ian Main, explicou ao The Guardian que, pelas fotos da tragédia, fica claro que a maioria das construções não havia sido projetada para resistir a fortes tremores. Isso teria levado diversos blocos de apartamentos a sofrerem com o chamado “colapso das panquecas”.
— Isso acontece quando as paredes e os andares não estão bem unidos e cada andar desmorona verticalmente no inferior, deixando uma pilha de lajes de concreto com quase nenhum espaço entre elas — contou Main, destacando que, nesses casos, “as chances de sobrevivência para qualquer pessoa dentro são muito pequenas”.
Em 2011, após um terremoto de 7,1 de magnitude ter atingido a cidade de Van e matado centenas de pessoas, o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, culpou as estruturas pobres dos prédios da região pelo alto número de mortos. Na época, ele disse que “municípios, construtores e supervisores devem agora ver que sua negligência equivale ao assassinato”.
Apesar da fala contundente, o próprio Erdogan anistiou, em 2018, as construções ilegais do país, que puderam tirar licenças sob o pagamento de uma taxa ao governo, sem se adequarem ao código de construção turco. A decisão possibilitou a arrecadação de cerca de US$ 3 bilhões (R$ 15 bilhões) para o governo. Na época, arquitetos e urbanistas turcos alertaram que o licenciamento retroativo desses edifícios — alguns com mais andares do que na planta original — poderia ter consequências fatais.
— Essa devastação extraordinária é perpetuada pela insistência em repetir políticas urbanas defeituosas e decisões politicamente orientadas, como a lei de anistia de zoneamento de 2018 — lamentou ao The Guardian o presidente da União da Assembleia de Engenheiros e Arquitetos Turcos em Istambul, Pelin Pinar Giritlioğlu.