O solo urbano como bem comum: análise sobre os (des)caminhos para a recuperação de mais-valias fundiárias no Rio de Janeiro, de Edmar Augusto

Em meio às discussões sobre o Projeto de Lei Complementar n º 44/2021, que trata sobre o novo Plano Diretor para a Cidade, e de questionamentos, a exemplo dos enviados pela Federação das Associações de Moradores do Município do Rio de Janeiro (FAM-RIO) a todos os vereadores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, solicitando especial e emergencial atenção para a situação de perplexidade e anomalia procedimental em que se encontra a tramitação do referido PLC, é muito oportuno o artigo do Pesquisador (Pós-doutorado) em Planejamento urbano e regional pelo LEDUB/IPPUR/UFRJ, Doutor em Urbanismo e Economista Edmar Augusto Santos de Araujo Junior, no qual analisa as características do instrumento da Outorga Onerosa do Direto de Construir previsto no texto em debate na Casa Legislativa.

Urbe Carioca

O solo urbano como bem comum: análise sobre os (des)caminhos para a recuperação de mais-valias fundiárias no Rio de Janeiro

Edmar Augusto Santos de Araujo Junior, Pesquisador (Pós-doutorado) em Planejamento urbano e regional pelo LEDUB/IPPUR/UFRJ; Doutor em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ e Economista graduado pela UFF

Outorga onerosa do direito de construir em área de operação urbana. Marrom: potencial adicional de construção; amarelo: contrapartida – Imagem divulgação – Fonte: Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento

O Projeto de Lei Complementar (PLC) no 44/2021, que institui a revisão do Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro (PD-RJ), atualmente na etapa de apreciação pela Câmara Municipal dos Vereadores, definiu a fórmula de cálculo da contrapartida financeira da Outorga Onerosa do Direito de Construir – OODC. O objetivo deste texto é tecer uma análise descritiva do método e das estratégias que embasaram a formulação do cálculo para a recuperação de valores do solo analisando cada componente.

A implementação do instrumento permitirá que recursos urbanísticos estratégicos sejam pagos ao poder municipal, em moeda corrente, para investir no desenvolvimento urbano. Ao redefinir usos e parâmetros construtivos para cada zona da cidade, o Plano Diretor (PD) contribui para a multiplicação do valor do solo, beneficiando proprietários privados e/ou sobrecarregando as infraestruturas urbanas e consequentemente encarecendo a terra urbana.

Na atual proposta de revisão do PD-RJ, fica definido que o Coeficiente de Aproveitamento Básico (CAB) é igual a 1,0, ou seja, corresponde ao direito de construir de forma não onerosa a extensão da área física do terreno, respeitando os parâmetros urbanísticos. Assim que haja interesse em construir acima do CAB, o licenciamento municipal deve ter em mãos o cálculo da contrapartida financeira a ser paga pelo interessado.

O CA máximo (CAM) define o limite máximo de aproveitamento do terreno para cada zona da cidade, de acordo com os parâmetros urbanísticos estabelecidos pelo planejamento urbano municipal. A capacidade de infraestrutura instalada para absorver excessos de contingentes populacionais e os vetores de desenvolvimento orientados ao transporte que justificam o adensamento e a verticalização de terrenos e devem anteceder a definição do CAM em cada macrozona (Anexo XVI do PLC 44/2021).

Os recursos auferidos devem ser utilizados para:  regularização fundiária, urbanística e edilícia; execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; constituição de reserva fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; implantação de equipamentos urbanos e comunitários; criação ou requalificação de espaços públicos, áreas de lazer e áreas verdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental e agrícola; e proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico.

É definido que o empreendimento licenciado que pagar a contrapartida financeira pelo direito de construir adicional, poderá aderir a um período de transição para a definição do seu CAB, nos quatro primeiros anos após a aprovação do PD, respeitada uma diminuição progressiva do potencial construtivo não oneroso, a cada ano. Esses fatores de redução negociados ao longo do tempo, incluídos na aplicação da OODC no novo PD-RJ, visam uma implementação gradual para um novo ambiente do planejamento urbano entre os agentes que atuam na cidade, com uma cobrança de 0,2 no primeiro ano, de 0,4 no segundo, até chegar a 1,0 no quinto ano pós aprovação do PD.

Contudo, este prazo de transição poderia ser de 3 anos, tal como foi feito no município de em São Paulo, que serve de paradigma para a implementação do instrumento no Brasil. A fórmula de cálculo da contrapartida financeira para o direito construtivo adicional representada pela OODC foi estabelecida no Anexo XXVI do PLC da seguinte forma:


O primeiro componente da fórmula é o fator de correção 0,8. Estabelecer este fator significa fixar em 80% o valor do metro quadrado adicional ao CAB. Costuma ser utilizado quando há uma grande oferta de terrenos em determinadas zonas da cidade e quando busca-se estimular o adensamento urbano com o maior aproveitamento do potencial construtivo dos terrenos, estimulando o empreendedor a adensar em um terreno ao invés de comprar um ao lado, por exemplo, para manter o número de unidades produzidas. O que faria mais sentido, se o instrumento estivesse sendo planejado para atuar em áreas com mais oferta de terrenos disponíveis, como nos bairros da Barra, Recreio e Vargens.

O segundo componente da fórmula consiste no termo [ATE – (S x CAB)], que embasa o cálculo da contrapartida pelo equivalente em dinheiro dos metros adicionais utilizados no empreendimento. O parâmetro de utilização do terreno ajustado ao coeficiente pretendido pelo projeto consiste na Area Total Edificável – ATE, que considera o potencial construtivo do terreno. O CAM é parametrizado ao CAB, através da ATE, considerando a projeção vertical do empreendimento em metros quadrados, excluindo do cômputo os recuos e afastamentos.

A subtração da ATE pelo produto da área do terreno (S) pelo CAB é um componente importante para determinar os casos em que a OODC não será aplicada. Fica definido que quando o produto S x CAB for superior a ATE, não incidirá cálculo da OODC. O CAB é menor do que um (1,0) no caso de preservação ambiental, cultural e histórica ou em outros casos em que a lei definir em que o CAB se iguala ao CAM. Analisando o mapa dos CAM por zoneamento, nota-se que na Area de Planejamento 4 (AP 4), que abrange os bairros da Barra da Tijuca, Recreio e Vargens, há áreas enormes com CAB menor que 1, o que na prática resultará na não aplicação do instrumento em áreas dinâmicas valorizadas.

A parametrização da fórmula de cálculo da OODC baseada no CAM considera a relação entre o CAB e o CA pretendido, sem exceder o limite máximo. No rol de instrumentos da política urbana, é possível ainda considerar os estoques construtivos máximos compatíveis com a infraestrutura instalada, por unidade territorial, como forma de autorizar projetos de empreendimentos onde o potencial construtivo será utilizado, operacionalizado por meio de leilões públicos ou por venda de certificados, como no caso das Operações Urbanas Consorciadas (OUC) e outros modelos híbridos.

Por exemplo, admite-se que o CAM possa ser distinto dos estabelecidos no PD, em casos que a lei criar OUC e Áreas Especiais de Interesse Urbanístico (AEIU), mantendo-se o mesmo CAB. Os critérios de cálculo das contrapartidas financeiras serão mantidos nas OUC existentes e na estabelecida pela Lei do Reviver Centro (Lei Complementar n. 229/2021). Importante mencionar que no Programa Reviver Centro, recém-lançado pela Secretaria de Planejamento Urbano, está prevista apenas a aplicação do instrumento Operações Interligadas (OI), o que é um flagrante equívoco relançar tal instrumento numa zona na cidade com maior capacidade de verticalização, casando investimentos comandados pelo mercado em outra zona extraordinariamente valorizada, a zona sul. Ressuscitar as OI quase 30 anos depois de ser utilizado na cidade com o PD de 1992 soa ainda mais estranho quando se atem ao fato de que o instrumento foi considerado inconstitucional no Estado de São Paulo.

O terceiro componente da fórmula considera a base de cálculo: o valor unitário padrão, VUP. O cálculo incide sobre o preço do terreno e não sobre o custo de produção, já que o preço por metro quadrado construtivo permanece constante, mas o preço total da produção aumenta em função do aumento do aproveitamento do terreno. Ou seja, a correspondência do valor do terreno virtual é o terreno real, o que é amplamente defendido pela literatura especializada no tema, embora haja autores que consideram o Custo Unitário Básico (CUB) da construção civil para parametrizar a fórmula de cálculo, para que a cobrança considere o custo total do empreendimento, o retorno de capital e o valor residual do terreno.

No método de cálculo do “terreno virtual”, adotado em São Paulo, Curitiba, Porto Alegre etc., recomendado pelo Ministério das Cidades em 2012, o CAM é parametrizado pelo CAB, uma vez que os metros adicionais apresentam o mesmo preço do metro quadrado do terreno original. A contrapartida é definida pela relação entre o valor do metro quadrado do terreno (Vt) pelo CAB: CP = Vt / CAB, multiplicado pelo número de metros adicionais requisitados.

Ainda que seja necessário comparar empiricamente os dois métodos, o PD-RJ considera as variáveis mais importantes para a fórmula de cálculo, o CAB e a aferição do valor do terreno, que deveria ser o mais próximo possível do valor de mercado. Todavia, na proposta do PLC de aferição, nota-se que foram utilizados os valores venais do cálculo do IPTU, cujo cadastro de imóveis encontra-se desatualizado, sobretudo, levando-se em consideração a referência de aferição do componente VUP à Lei 691 de 1984, que aprovou o código tributário municipal.

O VUP corresponde aos parâmetros estabelecidos pela Tabela XVI-A da Lei nº 691, de 1984, para o cálculo do Imposto Predial e Territorial Urbano, IPTU, por 0,3 (três décimos), definindo a parcela referente ao valor do lote em relação ao valor de referência do metro quadrado construído do IPTU. Importante destacar que nesta tabela, as regiões fiscais do município são divididas em três grandes grupos de bairros, com capacidades fiscais e urbanísticas distintas.

Neste sentido, o PLC afirma que Lei específica poderá estabelecer e atualizar os valores do VUP, indicando claramente que a contrapartida da OODC está atrelada a parâmetros desatualizados. O PD poderia já resolver essa defasagem de valor, com a inclusão de um multiplicador que busque atualizar a valorização dos terrenos por macrozonas, enquanto seja planejada a ideia de uma planta de valores específicas para a OODC.

O quarto e último componente da fórmula de cálculo é o Fator de Interesse Social e de Incentivo ao Desenvolvimento Econômico (FIS), que está representado no Quadro no Anexo XVIII do PLC. Em regra, recomenda-se o uso de fatores apenas em casos especiais ou como regras de transição temporária, já que não há garantia de que a produção e o consumo de bens com esses usos sejam de fato estimulados. Quando o FIS é igual a 0, há uma isenção total na cobrança, quando é menor do que 1, há um desconto na cobrança e quando é igual a 1, o valor da cobrança é integral.

Na prática, esse fator estimula a venda de terrenos pelos proprietários aos empreendedores de projetos com os seguintes usos: Habitacional (Habitação de Interesse Social: FIS = 0,0 e Habitação de Mercado Popular – até 250 mil reais: FIS = 0,6), Institucional (Hospitais Públicos, Escolas Públicas, Universidades Públicas, Unidades Administrativas, Entidades Privadas de Serviço Social e de Formação Profissional Vinculadas ao Sistema Sindical, Instituições de Cultura, Esporte e Lazer e Demais Unidades Públicas de Saúde e Creches: FIS = 0,0), Entidades Mantenedoras sem fins lucrativos (Hospitais e Clínicas, Universidades, Escolas e Creches, Equipamentos culturais e afins: FIS = 0,25), Outras Entidades Mantenedoras (Hospitais e Universidades: FIS = 0,8; Escolas e Equipamentos culturais e afins: FIS = 0,5) e Outras Atividades (FIS = 1,0).

Vale ressaltar que deveriam ser evitados acréscimos de fatores de interesse social, de planejamento urbano etc. que alteram para mais ou para menos o valor captado por potencial adicional. Se o objetivo do FIS é estimular a construção de escolas, universidades hospitais públicos e habitações de interesse social, isentando parcialmente ou totalmente esses empreendimentos é preciso ter em mente que a OODC não encarece o preço final das unidades imobiliárias. A isenção da contrapartida da OODC não significa um barateamento no custo total dos imóveis produzidos e diminui a capacidade do instrumento de regular o preço do solo, transferindo ao proprietário o valor do maior aproveitamento urbanístico do terreno.

A isenção total ou parcial da OODC apenas incentivaria o proprietário a dar preferência na venda do lote ao empreendedor que produzir bens com usos isentáveis. Neste caso, empreendedores e proprietários poderiam repartir o ganho decorrente da isenção, mas que não é repassado ao consumidor final, enfraquecendo a capacidade do instrumento de reduzir as expectativas de ganhos decorrentes de autorizações construtivas.

Portanto, com a cobrança dos potenciais construtivos, espera-se que haja ao logo do tempo, a criação de uma cultura institucional para a recuperação de mais valias fundiárias na cidade, integrando a OODC aos demais instrumentos do sistema de valorização do solo. Um passo importante para diminuir o gigantesco déficit habitacional e aumentar o acesso ao solo urbano infraestruturado, um bem comum para a classe trabalhadora carioca. O CAB unitário e universal se tornaria uma demanda real dos movimentos sociais de moradia porque permitem que sejam recuperados recursos urbanísticos estratégicos para investir na urbanização social do território. A Prefeitura defende que os recursos da OODC não sejam vinculados ao Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano, por dificultarem a gesto fiscal. Todavia, esses deveriam ser depositados neste Fundo, cuja gestão deveria ser acompanhada por um Conselho Municipal específico, para que haja controle social, transparência e acesso às informações.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *