“Sol e Sombra”: A História Esquecida das Touradas no Rio de Janeiro, de Antônio Sá

Neste artigo, publicado originalmente no Diário do Rio, Antônio Sá, Fiscal de Rendas aposentado e Ex-Subsecretário de Assuntos Legislativos e Parlamentares do Município do Rio de Janeiro, aborda a investigação promovida pelo livro “Sol e Sombra: As Touradas no Rio de Janeiro”  sobre a tradição das touradas cariocas, que marcaram a cidade por séculos antes de serem proibidas em 1908.

Urbe CaRioca

 “Sol e Sombra”: A História Esquecida das Touradas no Rio de Janeiro

Por Antônio Sá

Diário do Rio – Link original

Praça de Touros em Laranjeiras (Rua Ipiranga) – 1890 – Marc Ferrez

Tendo em vista a pouca lembrança sobre a prática das touradas no Brasil, o livro “Sol e Sombra: As Touradas no Rio de Janeiro” (Editora Unesp, 288 páginas), dos pesquisadores Victor Andrade de Melo e Paulo Donadio, resgata essa tradição inusitada que marcou a capital brasileira por séculos. A obra preenche uma lacuna historiográfica, analisando a popularidade das touradas cariocas e os embates políticos e culturais que levaram à sua extinção em 1908.

O livro revela que, entre os séculos XVIII e XX, o Rio de Janeiro sediou mais de 450 touradas, em arenas espalhadas pela cidade. A prática, herdada dos colonizadores portugueses, atraiu grande público e dividiu opiniões, sendo vista por uns como entretenimento, e por outros como barbárie. Os debates sobre civilização, progresso e identidade nacional também foram centrais para o fim da atividade.

As touradas chegaram ao Rio no século XVII, incentivadas pela Coroa Portuguesa como parte das comemorações oficiais da monarquia. Desde cedo, estavam integradas a grandes festividades religiosas e civis, realizadas para celebrar aniversários reais, casamentos e eventos políticos. As arenas – chamadas praças de touros – foram erguidas em locais como Campo de Santana, Cinelândia, Largo da Lapa e Rua do Lavradio.

Diferente do modelo espanhol, as touradas portuguesas não matavam os touros na arena, mas isso não significava menos sofrimento para os animais. Muitos ficavam feridos pelos ferros cravados em suas peles, enquanto toureiros e assistentes, conhecidos como capinhas, enfrentavam os desafios do espetáculo.

A partir do século XIX, empresários passaram a cobrar ingressos, transformando as touradas em um negócio lucrativo. Em seu auge, entre 1870 e 1884, os espetáculos eram promovidos aos sábados e domingos, atraindo milhares de pessoas.

As touradas no Rio de Janeiro não foram apenas uma forma de lazer, mas também um palco de disputas ideológicas. O livro demonstra como a atividade gerava debates entre:

• Defensores do progresso e da modernidade, que viam a prática como um costume ultrapassado e cruel.

• Setores da elite portuguesa no Brasil, que defendiam as touradas como símbolo de identidade cultural.

• Abolicionistas e republicanos, que utilizavam a tauromaquia como metáfora para a luta contra o autoritarismo e a violência do Estado.

Machado de Assis, por exemplo, era um crítico declarado das touradas. Em uma de suas crônicas, ironizou a prática dizendo que era sócio sentimental de todas as sociedades protetoras dos animais e que defendia os bois mais do que os homens.

As pressões pelo fim da tourada aumentaram na virada do século XX, principalmente com o crescimento da Sociedade Protetora dos Animais e com a chegada de novas formas de entretenimento, como o cinema e o teatro.

Em 1908, o prefeito Francisco Marcelino de Souza Aguiar assinou o decreto que proibia as touradas no Rio de Janeiro. A última apresentação aconteceu no final do mesmo ano, mas o espetáculo retornaria de forma excepcional em 1922, durante as comemorações do Centenário da Independência, na Praça da Cruz Vermelha.

Após a proibição, as touradas migraram para cidades vizinhas, como Niterói e São Gonçalo, onde resistiram por mais algumas décadas. Somente nos anos 1930, foram proibidas em todo o território nacional.

A partir de então, o espaço público carioca foi ocupado por novas formas de lazer. O futebol, o carnaval e os cinemas passaram a dominar a cena cultural, deixando as touradas no esquecimento.

Além da análise histórica, “Sol e Sombra” apresenta detalhes curiosos sobre as touradas no Rio de Janeiro:

1. Touradas com Touros Mansos?

Inicialmente, os touros utilizados nos espetáculos eram brasileiros, mas muitos eram considerados mansos demais para o desafio. Para aumentar a emoção das apresentações, animais começaram a ser importados de Portugal.

2. Arenas Móveis e Destruição pelo Público

As arenas de touros eram construídas em madeira, como os circos, e mudavam de local conforme a demanda. Algumas, porém, não duravam muito: em várias ocasiões, espectadores insatisfeitos destruíram as estruturas em protesto contra apresentações fracas.

3. O Flamengo Já Teve Praça de Touros

Os bairros cariocas do Flamengo e Laranjeiras abrigaram as mais concorridas arenas de touradas do Rio. Na Rua Marquês de Abrantes e na Rua Ipiranga, havia estruturas fixas para os espetáculos.

4. O Sistema de Sol e Sombra

O título do livro, “Sol e Sombra”, faz referência a um detalhe curioso das arenas de touradas. Os assentos eram divididos entre:

• Setor da sombra, onde ficavam os espectadores mais ricos.

• Setor do sol, destinado ao público de menor poder aquisitivo.

Essa separação não só marcava diferenças sociais, mas também era um reflexo das divisões políticas e culturais entre os cariocas da época.

Como apontam os autores Victor Andrade de Melo e Paulo Donadio, muitas pessoas desconhecem que o Brasil já teve touradas, e até historiadores ficam surpresos ao descobrir que a prática foi comum no Rio de Janeiro. O livro “Sol e Sombra” traz à tona essa parte esquecida da cultura carioca, mostrando como o espetáculo dividiu opiniões, gerou conflitos e refletiu as transformações sociais da cidade.

Em um momento em que as touradas ainda são debatidas na Europa, com grande resistência em países como Espanha, Portugal e França, a história das arenas cariocas nos ajuda a compreender as mudanças na relação entre os humanos e os animais ao longo do tempo.

Para quem gosta de história, cultura e curiosidades sobre o Rio de Janeiro, “Sol e Sombra” é uma leitura essencial que resgata um capítulo surpreendente do passado da cidade.

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