Dando continuidade ao debate sobre a possível e inadequada construção de um Museu do Holocausto no Morro do Pasmado, local escolhido pelo prefeito do Rio para a homenagem, composto por um obelisco com cerca de 20 metros de altura sobre larga base na qual estariam auditório e café/restaurante, além de jardins no seu entorno, publicamos o artigo do geógrafo Rafael Winter Ribeiro.
Rafael destaca que, para o ICOMOS, Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, órgão que assessora a UNESCO, além do alto impacto provável desta intervenção, as medidas tomadas para liberação da obra chamam atenção. “São agravantes o fato de estudo técnico de impacto ao patrimônio mundial não ter sido realizado, apesar das constantes solicitações do ICOMOS-Brasil, além de a população em momento algum ter sido ouvida sobre o assunto”, afirma. Leitura essencial para o entendimento do caso.
Urbe CaRioca
Por que o Rio de Janeiro pode perder o título de Patrimônio Mundial? Para entender o caso
Rafael Winter Ribeiro *
Geógrafo, Icomos
O título de Patrimônio Mundial é conferido pela UNESCO a partir de solicitação dos países e para isso estes precisam garantir que têm condições de preservar o bem e assinar compromissos para a sua gestão. A UNESCO não “tomba”, ela reconhece a proteção garantida pelos países. O Patrimônio Mundial também não é um título de beleza. Além de turistas, é capaz de trazer recursos para a conservação e ajuda a impedir o imediatismo de interesses políticos nas ações ligadas ao patrimônio.
O Rio de Janeiro em 2012 tornou-se a primeira grande cidade do mundo a ter partes de sua área inscritas como Paisagem Cultural, tipologia usada para inscrever lugares com uma excepcional combinação entre natureza e cultura. Entre a primeira proposta discutida em 2001 e a obtenção do título foram mais de dez anos de discussões e investimentos consideráveis para chegar numa proposta aceita pela UNESCO, da qual participaram um grande conjunto de técnicos e instituições.
Recentemente a prefeitura anunciou a construção de um memorial para as vítimas do holocausto, composto por um obelisco com os dez mandamentos, com cerca de 20 metros de altura sobre larga base na qual estariam auditório e café/restaurante, além de jardins no seu entorno. Trata-se da adaptação de um projeto vencedor de um concurso encomendado por um vereador nos anos 1990, cujo destino original seria a Praia de Botafogo.
Durante décadas parado, a administração atual resolveu dar seguimento rápido ao projeto, mas tratou que este tivesse muito mais visibilidade. Para o local foi escolhido o topo do Morro do Pasmado, nas margens da Enseada de Botafogo, com 62 metros de altura, antes um parque público e mirante coberto por vegetação, localizado na Zona de Amortecimento do Patrimônio Mundial do Rio (área envoltória que protege a zona delimitada como central), exatamente entre dois dos principais elementos do sítio, os morros do Pão-de-Açúcar e do Corcovado e, portanto, no interior das principais linhas visuais, objeto central do valor declarado na UNESCO. O parque, antes público, foi cedido a uma associação de oito pessoas constituída para esse fim e que ganhou o direito de explorar o espaço por 40 anos, sem licitação ou discussão.
Para o ICOMOS, Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, órgão que assessora a UNESCO, além do alto impacto provável desta intervenção, as medidas tomadas para liberação da obra chamam atenção:
1) A prefeitura, através de uma lei aprovada em 2018 retirou a proteção que havia sobre o local e que proibia construções ali desde a década de 1970. A legalidade da lei de 2018 está sendo contestada na justiça;
2) A instituição federal de proteção do patrimônio e gestor do patrimônio mundial no Rio de Janeiro, o IPHAN, deixou de reconhecer a proteção praticada na área desde 1974; esta ação também está sendo contestada junto ao Conselho Consultivo do IPHAN, esfera mais alta da Instituição.
Embora nunca tenha sido tombado, o Morro do Pasmado estava incluído dentro da delimitação de entorno dos morros da Urca, Pão de Açúcar e Babilônia. Esta delimitação visava proteger os bens tombados e estabelece um zoneamento bastante claro. O Morro do Pasmado localiza-se no que o IPHAN chamava de zona 3, onde só seria possível construir até uma altitude de 50 metros do nível do mar. O local onde se quer estabeler um obelisco de 20 metros está já a 62 metros de altura. Num parecer controverso, um único técnico, sem consultar mais ninguém, primeiro diz que o morro não estaria dentro da zona delimitada, fato facilmente desmentido pelos mapas do próprio IPHAN, em seguida declara sem validade toda a proteção de entorno praticada pelo IPHAN desde 1974 naquela parte de Botafogo que, se acatada, fica desprotegida.
Além disso, são agravantes o fato de estudo técnico de impacto ao patrimônio mundial não ter sido realizado, apesar das constantes solicitações do ICOMOS-Brasil, além de a população em momento algum ter sido ouvida sobre o assunto.
O ICOMOS-Brasil e a Associação de Moradores de Botafogo já encaminharam representação junto ao Conselho Consultivo do IPHAN, mas a reunião marcada para março foi desmarcada e não há previsão para que o assunto seja discutido. Enquanto isso, o ex-parque público já foi cercado e árvores cortadas durante o carnaval longe dos olhos da população.
A retirada de proteção é uma das coisas mais graves que pode acontecer com um sítio patrimônio mundial e sua zona de amortecimento, representa o não cumprimento do acordo mais básico para a obtenção do título: o de que a área é protegida. Com base nisso, o ICOMOS, cumprindo seu dever estabelecido pela Convenção do Patrimônio Mundial, prepara um relatório detalhado para o Centro do Patrimônio Mundial que, em última instância, pode colocar o Rio de Janeiro na vergonhosa Lista de Patrimônio Mundial em Perigo. Esta é a primeira etapa para retirada do título, fato que já aconteceu, por exemplo, com Dresden na Alemanha pela decisão de construção de uma ponte.
O Rio merece um monumento às vítimas do Holocausto construído com o cuidado e zelo que o tema exige, não feito às pressas por uma administração, não sem discussão e não agredindo a paisagem. Certamente um local mais adequado existe para isso. Esperamos a sensibilidade das autoridades envolvidas para que esse caso se resolva antes que os danos sejam irreversíveis e o título de Patrimônio Mundial da Paisagem Carioca não sofra, numa cidade já tão atacada no seu orgulho e carente de recursos que através do título de patrimônio mundial é capaz de obter.
Nota: Esta é a proteção que o IPHAN atual diz não reconhecer, embora tenha dito nos documentos desde 1974 que esta era a proteção que valia. O morro do Pasmado está perfeitamente identificado dentro da zona 3, onde o parecer que libera a obra estranhamente diz que não estaria e no qual há limite de 50 metros do nível do mar para construções. Documento extraído do Processo de Tombamento 869-T-73.
* Geógrafo, Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ, Coordenador do Geoppol – Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Território; Professor do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN; Representante do ICOMOS no Comitê Gestor da Paisagem Cultural Carioca. Um dos consultores e autores do Dossiê de Candidatura do Rio a Patrimônio Mundial e do seu Plano de Gestão.