Em artigo publicado originalmente no site “Diário do Rio”, reproduzido abaixo, o arquiteto Roberto Anderson aborda o fato de que, apesar de todos os questionamentos, o prefeito do Rio enviou à Câmara de Vereadores mais um projeto de lei de “mais valia”, o PLC nº 88/2022. “As mesmas irregularidades, produzidas por quem as comete na expectativa desse tipo de lei, poderão ser legalizadas”, afirma.
Urbe CaRioca
Roberto Anderson: A cidade dos ‘puxadinhos’
A aplicação da chamada “mais valia” na Cidade do Rio de Janeiro vem de longe. Ainda como Distrito Federal, a cidade conheceu esse tipo de legislação com o Decreto nº 8.720, de 18 de janeiro de 1946
Em 2005, a Lei 4.176, de autoria do então Vereador Luiz Antonio Guaraná, proibiu a regularização de obras através do instrumento “mais valia” em algumas áreas da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes. Por que nessas áreas? Talvez porque fossem áreas de interesse do mandato daquele político ou porque eram alvos mais evidentes dessa legislação, conhecida como “lei dos puxadinhos”.
A aplicação da chamada “mais valia” na Cidade do Rio de Janeiro vem de longe. Ainda como Distrito Federal, a cidade conheceu esse tipo de legislação com o Decreto nº 8.720, de 18 de janeiro de 1946. Segundo tal decreto, “sempre que a execução de uma obra seja feita em desacordo com a licença aprovada e que o interesse coletivo não justifique o seu desfazimento total ou parcial, o proprietário pagará à Prefeitura local uma importância correspondente à mais-valia que para ele houver resultado da desobediência.” O que parecia uma benesse inofensiva, virou vício do Poder Público carioca.
Desde então, legislações semelhantes vêm sendo propostas por diversos prefeitos. Com o controle da maioria dos legisladores a cada administração, nem sempre por razões republicanas, os prefeitos conseguem fazer passar leis na Câmara de Vereadores, que contrariam as regras urbanísticas estabelecidas por aquela mesma casa legislativa. Uma vez promulgada a nova “lei dos puxadinhos”, abre-se um período em que, pagando-se, as irregularidades cometidas são absorvidas e legalizadas.
Mesmo que todas as irregularidades existentes num determinado momento sejam sanadas, em seguida, surgem novas irregularidades à espera de uma nova “lei dos puxadinhos”, que regularizará as novas infrações. E assim vamos fingindo que as legislações urbanas são “pra valer”. A mesma Prefeitura que, com a aprovação da sociedade carioca, investe contra edificações irregulares da milícia, propicia a legalização de outras irregularidades, desde que mediante a entrega do vil metal.
Em 2018, a Lei Complementar nº 192, proposta por Crivella, revogou a lei que proibia a “mais valia”, aquela do Guaraná, reintroduzindo as condições em que uma construção ou acréscimo irregular poderia ser regularizado. Mediante pagamento, é claro. Assim, ampliação de coberturas, tetos sobre áreas de estacionamentos ou de uso comum dos edifícios, varandas que excedam a área total edificada permitida, fechamentos de varandas, e outras alterações passaram a ser legalizáveis.
Em 2020, Crivella exagerou. Utilizando-se do argumento de que a Covid-19 teria provocado um estado de calamidade pública, ao produzir carência de recursos no Município, o ex-prefeito voltou à carga, conseguindo aprovar a Lei Complementar nº 219. Bem mais flexível, essa lei terminou contestada pelo Ministério Público e pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que a suspendeu. Em 2021, essa suspensão foi mantida pelo STF. Se o leitor chegou até aqui, já deve ter percebido que o assunto é árido, mas que envolve alterações importantes na paisagem da cidade, mediante pagamento aos cofres públicos. Os prefeitos e legisladores devem contar com o enfado dos munícipes para seguirem aprovando coisas assim.
A lei proposta por Crivella, suspensa pela justiça, inovava ao admitir irregularidades futuras, já que também aprovava intervenções ainda na fase de projeto, mas que contrariavam a legislação. Isso passou a ser chamado de “mais valerá” (o carioca sofre, mas não perde o humor). Ela permitia acréscimos de pavimentos e supressão de afastamentos. Entre outros aspectos, contrariava a Lei Orgânica do Município, ao permitir o acréscimo em altura nos edifícios colados nas divisas com alturas inferiores aos seus vizinhos. Permissão semelhante foi incluída no Projeto Reviver Centro, beneficiando edificações situadas fora do Centro, desde que houvesse novas construções naquela área.