Reproduzimos o artigo do professor e arquiteto Janot, publicado no jornal O Globo no último dia 03. O articulista lembra o pedido de concordata da outrora pujante Detroit, nos EUA, e retorna à realidade urbano-carioca. Entre várias considerações afirma que “No Brasil de hoje é mais do que evidente o desinteresse pelo planejamento de longo prazo” e “Também não se pode esquecer as sinistras “Parcerias Público-Privadas” que, na verdade, utilizam mais recursos públicos do que privados”.
As reflexões são um alerta. A nós, remetem – entre outras decisões legislativo-urbano-cariocas questionáveis analisadas neste blog como o inexplicável Campo de Golfe -, às CEPACs da Zona Portuária compradas de uma só vez à Prefeitura pela Caixa Econômica Federal e revendidas por preços muitíssimo mais altos (Por que não pela própria Prefeitura?), e aos pesados investimentos públicos na Barra da Tijuca, região que ‘anda sozinha’ ao sabor das leis novas e do interesse do mercado imobiliário, enquanto o resto da cidade é… o resto.
Nem o exemplo de Londres serviu. Aqui, uma exceção à Barra e à região das Vargens: em breve teremos Guaratiba pós-lamaçal com seu misterioso PEU.
Boa leitura.
Urbe CaRioca
Luiz Fernando Janot
A sociedade americana vive um momento de perplexidade diante do recente pedido de concordata da cidade de Detroit. Símbolo-sede da sua poderosa indústria automobilística, Detroit não resistiu ao processo de desindustrialização que, por anos a fio, afetou a cidade. A crise financeira envolvendo as três grandes montadoras — Ford, GM e Chrysler — arrastou consigo outras indústrias menores e agravou, ainda mais, os elevados índices de desemprego. Sem novas perspectivas de trabalho, uma parcela significativa da população deixou a cidade, largando para trás uma quantidade expressiva de residências e edifícios comerciais desocupados. Esta é a triste realidade de uma das mais importantes cidades americanas que, como outras espalhadas pelo mundo afora, deixaram de criar alternativas para enfrentar os desafios decorrentes das transformações ocorridas nos meios de produção industrial. De uma maneira geral, essa atitude reflete a visão imediatista que costuma prevalecer nas decisões políticas sobre o desenvolvimento urbano das cidades.
No Brasil de hoje é mais do que evidente o desinteresse pelo planejamento de longo prazo. Vive-se um delírio pseudodesenvolvimentista que transfere para o futuro o ônus da irresponsabilidade fiscal e do desperdício do dinheiro público em obras desprovidas do planejamento. As empreiteiras, penhoradas, agradecem os perdulários financiamentos do BNDES garantidos por frequentes capitalizações com recursos do Tesouro Nacional. Também não se pode esquecer as sinistras “Parcerias Público-Privadas” que, na verdade, utilizam mais recursos públicos do que privados. Os novos estádios de futebol estão aí para confirmar essa afirmação.
Por outro lado, percebe-se uma expansão incontrolável do tecido urbano das cidades brasileiras promovida pelo capital financeiro travestido de capital imobiliário. O interesse do mercado em criar novas centralidades, através da oferta de edifícios corporativos e de shopping-centers, tem contribuído para o abandono de importantes prédios do centro histórico e para a degradação dos espaços públicos no seu entorno. Por que seguir o exemplo de São Paulo, que esvaziou o velho centro ao implantar, sucessivamente, novas centralidades? Por que em vez disso não incentivar a requalificação espacial e tecnológica dos belíssimos edifícios de escritórios existentes nas áreas centrais, como está sendo feito atualmente com o Empire State em Nova York?
A realidade econômica e financeira do mundo globalizado faz com que essas respostas não sejam tão simples como se pode supor. Para o geógrafo inglês David Harvey, a qualidade da vida urbana, ao virar mercadoria, trouxe consigo uma aura de liberdade para a escolha dos bens de consumo e para as atividades de lazer e entretenimento — obviamente, para quem tem dinheiro para usufruir desse privilégio. Esse modelo faz com que os comportamentos sociais se reduzam, apenas, à sua condição econômica. Todavia, o direito à cidade é muito mais abrangente do que esse tipo de reducionismo. As cidades, na sua essência, possuem vínculos sociais e culturais próprios, assim como estilos de vida e valores estéticos diversificados. Esses aspectos de natureza humanística não podem ser desprezados inconsequentemente.
Nos processos de transformação urbana não cabem o temor reverencial e o deslumbramento diante de modelos culturais padronizados e introduzidos através de um marketing ardiloso. No Rio, corre-se duplamente esse risco quando se incentiva a criação de uma nova centralidade na Barra da Tijuca e, paralelamente, se investe na revitalização da zona portuária a partir de sofisticados prédios corporativos para atender a uma suposta demanda reprimida por esse tipo de edificação. O imediatismo de decisões tomadas pela sua repercussão midiática reflete uma espécie de esquizofrenia do poder. No futuro, quem pagará o preço pela falta de um planejamento consistente será a própria cidade.
Luiz Fernando Janot é arquiteto e urbanista