Querido São Sebastião,
Ando sumida, sei. No último dia 20 não escrevi para o senhor, conforme costumo fazer na data que celebra o padroeiro do meu Rio de Janeiro.
Peço sua compreensão. O calor por aqui fez aumentar o desânimo em relação ao que tem acontecido em terras cariocas. Não preciso explicar. Daí de cima o senhor tudo vê.
Também não se trata de descrença ou de perder a fé na sua capacidade. A tarefa de consertar o Rio é árdua para o mais poderoso protetor.
Aproveito a ótima escrita de Joaquim Ferreira dos Santos e a reproduzo aqui, pois o senhor não deve ter tempo para ler jornal de papel nem on line.
Livre-nos das flechas transformadas em balas mortíferas. Dos maus gestores públicos. Da desesperança.
Sua fiel devota,
Reclamilda
Libertem São Sebastião das flechas
Um santo que é a metáfora de uma cidade bem feita de corpo e resistente às invasões do mal, há 460 anos amarrada ao tronco da violência
Por Joaquim Ferreira dos Santos – O Globo

É uma história muito bonita a de que São Sebastião, ainda sem as flechas cravadas no peito, pulava de canoa em canoa, de espada em punho, vestido com uma armadura de guerreiro romano, tudo para defender os portugueses do conluio de tamoios e franceses na Batalha das Canoas, em plena Baía de Guanabara.
O Cristo Redentor já devia estar no alto do Corcovado, embora ainda não concretado de braços abertos, e certamente viu, torcendo pela vitória daquele santo de sua espécie católica. Essa parte da lenda não consta dos autos da batalha, trancados em latim nos cofres da Companhia de Jesus, e está sendo criada neste momento para tentar tornar ainda mais bonita a passagem de São Sebastião por aqui.
Pois então, valei-nos, glorioso mártir, que hoje é teu dia, coitado. O soldado de Cristo está para sempre amarrado ao poste da Praça Luiz de Camões, flechado por todos os lados, bronzeado pela fuligem dos ônibus e cercado de cracudos, tudo mais ou menos próximo ao edifício onde morava a socialite Carmen Mayrink Veiga.
Carmen era temente aos teus poderes, meu bom Sebastião, uma cristã de terço e caviar. Uma tarde, na redação de O Dia, junto com o material da coluna sobre etiqueta que assinava no jornal, ela me entregou um santinho teu dizendo com voz educada, aluna do Sion, que era promessa por uma graça alcançada. Eu, fino menino, em respeito ao feminino não perguntei qual – e agora, ao escrever essas linhas, me arrependo. Seria bom final de um parágrafo em prol de tua vermelha e branca adoração.
Acolhei sob vossos cuidados a cidade da qual sois rei, padroeiro e a mais completa tradução estética, vide o corpo sarado, o bíceps saltado, a tanga de quem vai sair logo mais no bando dos Tangarás. Sem contar a pose lânguida de quem, deixa que digam, não tá nem aí para a maledicência da vizinha faladeira.
“Ó grande atleta da Santa Madre Igreja, ó vigoroso”, escreveu aos pés de tua santa imagem seminua o cônego João Carneiro no “Hino do Padroeiro da Cidade”. É preciso preparo físico, muitas colheres de whey protein na água benta dos Capuchinhos, um pote de açaí na santa eucaristia dos Beneditinos, para proteger a cidade tão castigada pelos novos tamoios, matando todo dia uma criança com suas flechas perdidas, infernizando a vida em suas canoas elétricas sobre as calçadas.
O poeta de costas para o mar de Copacabana já te viu “esplêndido de juventude e esperança”. O poeta da Rua do Curvelo deixou de lado os pudores de assinar uma rima em “ão”, de inventar palavras para sustentar o verso, e escreveu que o Rio, “Bravo Sebastião”, é filho de quem “num dia de janeiro/ lhe deu santa defensão”.
Não é um santo este que se comemora hoje, é a metáfora de uma cidade bem feita de corpo e resistente às invasões do mal, há 460 anos amarrada ao tronco da violência e à espera de alguém que vá até a Praça Luiz de Camões e faça o que o sambista Moacyr Luz, ali em frente, no antigo estúdio da Rádio Globo, pediu tantas vezes, em forma de música, no programa “Samba da Madrugada”, do Adelson Alves. “Tira as flechas do peito do meu padroeiro”, diz a letra de “Saudades da Guanabara”, “Que São Sebastião do Rio de Janeiro ainda pode se salvar”.
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