Desregulamentação da legislação urbana, de Roberto Anderson

No artigo publicado originalmente no site Diário do Rio, reproduzido abaixo, o arquiteto Roberto Anderson tece considerações sobre o que considera um processo de desregulamentação no mundo capitalista, iniciado na década de 1980.

A este blog interessa o tema tratado a partir do quinto parágrafo, quando o autor aponta que aquele processo ocorre na Prefeitura do Rio de Janeiro de diversas formas. Menciona especificamente o novo modo como o licenciamento de obras se dá, em trâmite “acelerado até torná-lo bastante superficial”.

Em seguida nos traz questão abordada em postagens recentes* do Urbe CaRioca sobre a proposta de um novo Plano Diretor para o Rio de Janeiro que está em análise na Câmara de Vereadores, em especial quanto à supressão de leis urbanísticas específicas para bairros da cidade, conceito introduzido a partir do Plano Urbanístico Básico – PubRio, de 1977 “que dividia o território municipal em cinco Áreas de Planejamento, instituía os Projetos de Estruturação Urbana (PEU) para o planejamento local, respeitando as características dos diferentes bairros e criava políticas setoriais para o desenvolvimento econômico e social” (fonte: site da Prefeitura).

Compartilhamos das preocupações de Roberto Anderson e entendemos que tal medida será um retrocesso, caso elimine os avanços obtidos com a elaboração dos Projetos de Estruturação Urbana decretados paulatinamente ao longo dos últimos quarenta anos.

*v. A proposta da Prefeitura para o Plano Diretor – comentário sobre Botafogo, de Rose Compans e Urca – Um dos alvos do Plano Diretor proposto para o Rio

Urbe CaRioca

Roberto Anderson: Desregulamentação da legislação urbana

Publicado originalmente no Diário do Rio

Desde a década de 1980, com a chegada de Margaret Thatcher e Ronald Reagan ao poder, o mundo capitalista entrou num processo de desregulamentação. Suprimiram-se legislações de controle da produção de bens e serviços, e de proteção ao trabalho e aos cidadãos. Em busca de melhores condições de competitividade de produtos nacionais no mercado global, boa parte do arcabouço do sistema de proteção social foi destruida. Para o comércio mundial foi muito bom, mas para os cidadãos, nem tanto. Houve aumento generalizado da pobreza, da concentração de renda e da desigualdade social.

Os ecos desse processo se fizeram sentir fortemente no Brasil, onde sequer havia um bom sistema de proteção social. Jovens, e outros nem tão jovens assim, hoje circulam pelas ruas fazendo entregas sobre bicicletas que não lhes pertencem, para empresas que não lhes empregam, sem garantias de cobertura quando adoecem ou se acidentam. E sem contribuir para suas aposentadorias. Donos de veículos trabalham horas além de qualquer jornada regulamentada para obter algum retorno com o aluguel dos mesmos.

No plano federal, o governo Bolsonaro aprofundou ainda mais a desregulamentação. Agrotóxicos são livremente aspergidos nos alimentos que consumimos sem que a Anvisa interfira. O Exército não mais controla a farta aquisição de armas e munições que acontece no país (mas quer controlar as urnas eletrônicas). O Estado não controla a invasão de terras públicas na Amazônia e o Poder Executivo não tem controle sobre a distribuição de verbas de boa parte do orçamento federal, dito secreto.

Na Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, esse processo se dá de diversas formas. Com a justificativa de desburocratizar o licenciamento de novas construções na cidade, o mesmo foi acelerado até torná-lo bastante superficial. Aliás, essa análise nem mais cabe à Secretaria Municipal de Urbanismo. E a responsabilidade por ajustar o projeto às legislações vigentes passou a ser dos autores dos projetos e dos construtores.

Tal alteração no processo de licenciamento de edificações foi feita sem que se soubesse a porcentagem de problemas e erros encontrados anteriormente, quando os projetos eram detalhadamente analisados pela Prefeitura. Assim, a fiscalização a posteriori passou a ser responsável por garantir que problemas não ocorram, fiscalização essa sempre deficitária num país onde a cultura vigente é a de tentar burlar a lei. Ao contrário de um sistema de precaução, entramos num sistema de correção de erros após serem encontrados, o que nem sempre será possível.

A mais recente manifestação de desregulamentação aqui no Rio está se dando na discussão do novo Plano Diretor. Conforme já anunciado, foi proposta a supressão das legislações locais, os Planos de Estruturação Urbana – PEUs, em favor de uma legislação única para toda a cidade. Os PEUs foram introduzidos em nossa legislação pelo PUB-Rio, de 1977. Um avanço na direção do reconhecimento da singularidade de cada espaço da cidade e da diversidade de características dos diversos bairros que compõem o Rio de Janeiro. A elaboração dos PEUs já existentes contou com a participação dos moradores locais e, teoricamente, eles refletem acordos entre aqueles e o poder público. Sim, são trabalhosos e ainda não cobrem a maioria dos bairros, mas não quer dizer que sejam ruins, muito pelo contrário.

Dar voz ativa aos moradores é o que há de mais atual em processos de governança democrática. Cabe ao poder público ter argumentos para reduzir as tendências ao chamado nimby (not in my back yard ou não no meu quintal). Os moradores da Urca, por exemplo, foram muito aguerridos contra a instalação do Centro de Design Europeu no antigo Cassino da Urca. Agora vão se deparar com a escola Eleva e o risco dos automóveis de seus ricos pais atravancarem a entrada do bairro. Outros grupos de moradores desejam manter a exclusividade da função residencial em suas ruas. Certamente, isso tem lhes garantido calma e silêncio, especialmente agora que templos vêm se transformando em fontes de poluição sonora e bares congregam grupos ruidosos no período noturno. Mas que mal faria uma quitanda, uma loja de conveniência ou uma padaria numa rua residencial? Para que esses estabelecimentos sejam aceitos, é preciso convencimento, diálogo e paciência.

As discussões para o novo Plano Diretor trazem algumas boas propostas, como a outorga onerosa, que permitirá recolher aos cofres públicos parte da valorização dos terrenos ou o IPTU progressivo para terrenos que permaneçam ociosos, sem edificação. A limitação de muros externos em 1,10m de altura é uma medida que reduziria a tendência de fortificação dos imóveis, que torna algumas ruas verdadeiros desfiladeiros entre muros (e cachorros latindo agressivamente). Também a regulamentação do Estudo de Impacto de Vizinhança é uma boa medida. É interessante lembrar que esse instrumento foi usado sem regulamentação, num processo com muitas falhas, na autorização para a demolição da Perimetral.

O fato é que a Câmara de Vereadores, a instância em que o novo Plano Diretor será aprovado, deveria olhar com cuidado as vantagens da existência dos PEUS, as razões pelas quais não se estenderam aos demais bairros e os riscos de se caminhar em direção a legislações generalizantes e simplificadoras, já que a cidade é complexa.

Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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