O rapto do Rio Carioca, de Roberto Anderson

Neste artigo, publicado originalmente no Diário do Rio, o arquiteto Roberto Anderson aborda as transformações que o Rio Carioca sofreu ao longo do tempo, destacando a sua importância como alvo ideal para dar início à grande jornada de recuperação dos nossos rios. “Ele não pode continuar sendo misturado ao esgoto e jogado em alto mar. Os cariocas querem o seu rio de volta”, afirma.

Ao final do artigo, vale conhecer a cartilha “Trilha do Rio Carioca”, organizada pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, e o link do artigo “Laranjeiras, berço do Carioca”,  escrito por Nireu Cavalcanti, arquiteto e historiador,  professor e diretor da Escola de Arquitetura e Urbanismo, para a comemoração da 100ª edição do Jornal Folha da Laranjeiras em maio de 1993.

Urbe CaRioca

Roberto Anderson: O rapto do Rio Carioca

Link original

Muito antes de existir o gentílico carioca, existia o rio. E existiam os indígenas que habitavam o lugar e as lendas que envolviam suas águas. A da formosura, emprestada às mulheres que com elas se banhassem, é das mais cativantes. Há controvérsias sobre a origem do nome. Casa do homem branco? Derivado do nome de antiga aldeia Tupinambá? É difícil precisar.

O curso do Carioca também sofreu alterações. Consta que, no passado, ele se abria em dois, uma perna indo em direção ao que hoje é a Glória e outra em direção à praia do Flamengo. Assim, o Catete ficaria numa ilha entre o rio e mar. Depois, suas águas foram desviadas para a linha de cumeada de Santa Teresa. Passavam pela Caixa da Mãe D’Água, desciam pela atual rua Almirante Alexandrino, até alcançar o aqueduto da Lapa e chegar ao largo, que passou a se chamar da Carioca. Lá, num generoso chafariz, os moradores da cidade coletavam água e lavavam suas roupas.

As águas do Carioca ainda foram estendidas até o chafariz do Mestre Valentim, na Praça XV, vindo pela rua do Cano, atual Sete de Setembro, onde também abasteciam os navios. Atualmente esse lindo monumento se encontra seco, intrigando os passantes sobre a sua finalidade. No Largo da Carioca, o antigo chafariz foi substituído por outro, neoclássico, projetado por Grand Jean de Montigny. Mas esse também não resistiu à fúria demolidora do chamado progresso.

Com a necessidade de abastecimento de água para a cidade aumentando, foram buscar água bem mais longe, em Rio D’Ouro, e todo o sistema antigo ficou obsoleto. O reservatório do Carioca, em Santa Teresa, foi sendo desativado, as canaletas por onde a água seguia foram demolidas, o aqueduto virou viaduto para os bondes, e os chafarizes secaram. A água agora vinha diretamente da Baixada Fluminense para as torneiras das casas.

Com o tempo, o leito original do rio, no vale do Cosme Velho e de Laranjeiras, foi canalizado, ficando sob o trânsito intenso das vias daqueles bairros. Os olhos da população não viram as ligações de esgoto que foram sendo conectadas ao rio, e a vida que nele foi morrendo. Hoje, tudo o que não mais queremos passa pelas águas do Carioca. Ele ficou imprestável, feio de se ver, de cheiro ruim de se sentir.

Há alguns anos atrás, uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) foi instalada próxima à sua foz, no Parque do Flamengo. Fazia parte da rendição dos governos à poluição dos nossos rios, tratando o problema lá na ponta, sem interesse em enfrentar a grande tarefa de despolui-los por inteiro, ao longo dos seus cursos. O Carioca, por muito tempo, permaneceu limpo enquanto atravessava a Floresta da Tijuca, poluído ao atravessar a área urbana, e parcialmente despoluído junto à sua foz. Assim, eram minorados os efeitos danosos do seu desague junto à praia.

Mais recentemente, a tal ETE foi desativada e, consequentemente, o rio, inteiramente poluído, provocou uma enorme mancha escura junto à Praia do Flamengo. Como solução, a nova concessionária do serviço de água e esgoto da cidade decidiu assumir, por conta própria, que o rio Carioca é mesmo uma galeria de esgoto, conectando-o à tubulação que segue até o emissário submarino de Ipanema. As águas do Carioca agora se misturam a toda a porcaria produzida por uma boa parte da cidade e vão desaguar anônimas e fétidas na altura das Ilhas Cagarras. O rio Carioca, que nasce límpido na floresta, não chega mais à sua foz. Desaparece no meio do caminho.

Tal decisão absurda não leva em consideração o tombamento do rio Carioca pelo Inepac, em 2019. Esse tombamento foi o primeiro de um rio urbano no Brasil e buscou representar um marco para o início da sua recuperação. Dali para a frente não mais seriam admitidas violências contra o Carioca e um plano para o seu manejo deveria ser proposto. Isso ainda não aconteceu, mas não significa que se possa desconsiderar o tombamento e fazer o que se queira com o pobre rio. Aqui no Rio de Janeiro, sem reação dos governantes, uma bolsa de valores foi fechada, assim como uma universidade, vigas de um viaduto desapareceram, e um rio está sendo raptado.

Nossas cidades precisam aprender a conviver com a natureza em que se inserem. Precisam manter as áreas verdes, acolher os animais silvestres e cuidar dos rios que as atravessam. O problema da poluição dos rios urbanos é gigante e desafiador. Mas é preciso começar a enfrentá-lo por algum ponto inicial. O rio Carioca, que nos deu nossa identidade, é o alvo ideal para dar início à grande jornada de recuperação dos nossos rios. Ele não pode continuar sendo misturado ao esgoto e jogado em alto mar. Concessionária Águas do Rio, vocês têm essa imensa responsabilidade. Os cariocas querem o seu rio de volta.

Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

 

Artigo “Laranjeiras, berço do Carioca” – Nireu Cavalcanti

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