Conforme previu a Constituição Federal promulgada em 1988, as cidades com mais de 20 mil habitantes devem dispor obrigatoriamente de um Plano Diretor de desenvolvimento urbano.
Assim, no Rio de Janeiro, tivemos a Lei Complementar nº 16, de 4 de junho de 1992, e, em seguida, a Lei Complementar nº 111, de 11 de fevereiro de 2011. Em termos concretos, esses planos definiram os índices de aproveitamento dos terrenos para toda a cidade (IAT), o número que multiplicado pela área do terreno resulta no potencial construtivo desse – a área máxima de construção permitida no local fora outros compartimentos e andares “não computáveis” acrescidos como bônus. O restante compreende apenas um conjunto de diretrizes, ou seja, orientações que poderiam ou não ser cumpridas pelos gestores públicos conforme políticas e decisões de governo.
Podemos afirmar que após a edição do primeiro Plano Diretor, muitas diretrizes não foram cumpridas, inclusive quanto à elaboração de novas leis de uso e ocupação do solo e de edificações, conforme previsto, entre outras. Os índices IAT, por sua vez, mantiveram-se iguais aos antes existentes.
Na lei de 2011, entretanto, alguns dos índices construtivos foram aumentados expressivamente, fato que foi ampliado com leis específicas elaboradas em nome das olimpíadas. Quanto às demais intenções, a situação aparentemente se repetiu na edição de 2011, de acordo com a análise feita pelo O Globo na matéria reproduzida abaixo.
É obrigação dos Poderes Executivo e Legislativo – na figura dos representantes escolhidos pela população – respeitar o Plano Diretor e colocá-lo em prática ao longo do tempo. Se não aconteceu antes, que venha uma lei melhor. E que seja corretamente cumprida.
Urbe CaRioca
Nota – Neste blog, em algumas ocasiões, mencionamos casos de descumprimento do Plano Diretor, conforme postagens listadas abaixo.
A “Lei dos Puxadinhos” no Rio, a decisão judicial e a eleição municipal de 2020, de Sonia Rabello
Sempre o gabarito, modelo 2021
LC nº 219/2020 – Liminar suspende efeito da “Lei dos Puxadinhos”
PLC 174/2020 e LC 219/2020 – Representação por inconstitucionalidade
PLC 174/2020 e LC 219/2020 – O Powerpoint que nada justifica
Considerações sobre a Lei Complementar nº 219/2020 e o PLC nº 174/2020
Justiça seja feita: Rio salvo da “pandemia” urbanística, por ora…, de Sonia Rabello
“Campo de Golfe rasga Plano Diretor”
Em 10 anos, Plano Diretor do Rio, que estabelece a política urbana do município, não atingiu metas
Lucas Altino – O Globo – 8 de fevereiro de 2021- Link original
O secretário municipal de Planejamento Urbano, Washington Fajardo, vai enviar novo pacote urbanístico à Câmara do Rio; desde o fim de 2019, prefeitura trabalha na revisão do Plano Diretor
O secretário municipal de Planejamento Urbano, Washington Fajardo, vai enviar novo pacote urbanístico à Câmara do Rio; desde o fim de 2019, prefeitura trabalha na revisão do Plano Diretor Lucas Altino
Há 10 anos, quem chegasse ao quarteirão entre a Rua Silvia Pozzano e avenidas Miguel Antonio Fernandes e Tim Maia veria apenas mato, com exceção de um ou dois condomínios. Hoje, o Recanto do Recreio, que se apropriou do nome do bairro, tem mais de 10 mil moradores. Com o gigantismo de um sub-bairro, o paraíso chegou como uma promessa que o tempo foi derretendo com problemas de fornecimento de água, alagamentos e ruas subdimensionadas para o tamanho do empreendimento. A 35 quilômetros dali, a Avenida Itaoca, em Bonsucesso, exibe uma malha urbana densa e consolidada num cenário de prédios vazios e ruas desertas. Os dois lugares são o retrato dos contrastes da cidade nunca resolvidos pelo Plano Diretor, que completou 10 anos no último dia 1º.
Uma década em que não se concretizou a ideia de uma Zona Sul com crescimento controlado, uma Zona Norte e um Centro pujantes em investimentos imobiliários e uma Zona Oeste crescendo no mesmo ritmo da infraestrutura de seu entorno. Nesta última região, o poder público entraria com investimentos sobretudo em bairros como Campo Grande, Santa Cruz e Realengo, e parcerias público-privadas alavancariam projetos na Barra, no Recreio e em Jacarepaguá.
Nada mais ilusório. Dados da prefeitura mostram que todos os olhares de fato se voltaram para a Zona Oeste, que concentrou a maior parte dos licenciamentos imobiliários entre 2011 e 2020, mas o suporte necessário para tanto interesse despertado por investidores não aconteceu na mesma proporção. Das 295 mil unidades licenciadas na cidade, entre residenciais e comerciais, 127 mil, ou 43% do total, foram na Área de Planejamento 4 (Barra, Recreio, Jacarepaguá e entorno), e 71 mil (24%) na Área de Planejamento 5 (Campo Grande, Santa Cruz e entorno).
Nas AP1 (Centro) e AP3 (Zona Norte, com exceção da Grande Tijuca), que deveriam ser o foco de crescimento porque se encontravam mais maduras do ponto de vista urbanístico, aconteceu o inverso. As duas regiões somaram apenas 75.819 novos licenciamentos no período, um quarto do total.
A evolução das manchas urbanas de áreas construídas na cidade ilustra o “boom” da Zona Oeste: entre 2011 e 2020, a AP5 ganhou 14,7 quilômetros quadrados de área urbana, uma variação de 9%. Na AP4, a variação percentual foi a mesma, com 9,4 quilômetros quadrados de expansão. Já a AP1 e AP3, que deveriam ser as zonas incentivadas, a variação foi pífia, de 2%.
Frustração no Recreio
Quem apostou no que estava escrito no Plano Diretor amarga frustração. Há seis anos, o empresário Lúcio Oliveira se mudou para o Recanto do Recreio, animado com a perspectiva de duplicação da Rua Silvia Pozzano e de melhoria no saneamento e na conservação. Porém, instalado num terreno alagadiço, já presenciou inúmeras inundações. Na última grande tempestade, há dois anos, os moradores ficaram ilhados após o canal transbordar e os deixar sem a única ponte de acesso aos condomínios.
— O canal precisa ser dragado, as inundações pioraram muito. O crescimento populacional foi muito grande e impermeabilizou o solo. Ainda tem condomínio para ser lançado, e daqui a pouco chegaremos a 20 mil moradores. Vamos entrar em colapso — afirma Oliveira, que é síndico de seu condomínio, que tem 3.423 unidades, e batalha por melhorias na região.
Ao mesmo tempo, o crescimento de Santa Cruz e Campo Grande se deu, basicamente, por meio do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal. A mestra em planejamento urbano pela UFRJ Tainá Alvarenga realizou uma pesquisa no Condomínio Coimbra, um dos muitos lançados pelo programa em Santa Cruz, para avaliar o impacto da mudança de bairro na vida dos moradores, que, na sua maioria, vieram de comunidades da Zona Norte.
— Vimos uma expansão sem estrutura. Os principais problemas dos moradores são falta de mobilidade urbana e ausência de serviços públicos, além de presença da milícia. O impacto também se estende à população do entorno, principalmente no que diz respeito a saneamento básico — diz Tainá, observando que muitos voltaram para os bairros de origem. — O Estatuto das Cidades prevê que pessoas, quando removidas, devem ir para um local a no máximo dois quilômetros de distância, mas isso não foi respeitado.
O geógrafo Hugo Costa, saiu do Anil, na Zona Oeste, para Ramos, na Zona Norte, em 2013. Mas há anos ele denuncia o abandono da chamada Zona da Leopoldina, que ganha cada vez mais “ruas fantasmas” e perde espaços verdes. Ele diz que há inúmeros imóveis e fábricas abandonados na Avenida Itaoca, na Rua Uranos e na Rua Nerval de Gouveia:
— A Leopoldina fica mais perto do Centro do que o Leblon, mas não é valorizada.
Conceitualmente, o Plano Diretor foi bem feito, destaca o urbanista Lucas Faulhaber, vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio (CAU). Mas ele observa que faltaram leis e normas para transformar boas premissas em realidade:
— O plano é muito “principiológico”, genérico e sem metas claras — afirma Faulhaber. — Outro problema é a falta de transparência sobre fontes de recursos, como fundo de habitação.
Faltam leis
As leis que deveriam ter sido criadas para dar forma ao plano, sancionado em 2011, foram esquecidas. O advogado Vinicius Custódio, especialista em direito urbanístico, explica que a única legislação aprovada foi o Código de Obras de 2018.
— Temos um diagnóstico de 2011, mas o que efetivamente regula o uso do solo no Rio é um decreto de 1976 — diz.
Desde o fim de 2019, a prefeitura trabalha na revisão do Plano Diretor. O secretário municipal de Planejamento Urbano, Washington Fajardo, vai enviar novo pacote urbanístico à Câmara do Rio, com textos de leis para uso e parcelamento do solo, de fiscalização e de zoneamento, além de código de obras.
— Temos um bom plano, mas o que aconteceu no Rio foi outra coisa. A macrozona incentivada não foi incentivada, e o licenciamento se distanciou do Centro, produzindo um modelo urbanístico esquizofrênico — avalia.
Procurada para responder sobre os problemas do Recanto do Recreio, a Fundação RioÁguas disse que fará vistoria no canal e que foi assinado no mês passado um novo contrato para manutenção de corpos hídricos. Sobre a ponte, a Secretaria municipal de Infraestrutura promete reparos.
Em junho, nova proposta urbanística para a cidade será apresentada
Em junho, Washington Fajardo, deve entregar o novo Plano Diretor da cidade com um pacote urbanístico integrado que, entre outras coisas, vai propor a revitalização do Centro e na área chamada de Brop — que reúne Bonsucesso, Ramos, Olaria e Penha.
— Precisamos reciclar a Zona Central, qualificar e diminuir atratividade na Zona Oeste e aumentar atratividade na Zona Norte. Isso tudo será bom para desafogar a pressão sobre a Zona Sul — explica Fajardo, que cita ainda ideias para regiões específicas. — Podemos apostar no potencial gastronômico de Guaratiba e vamos incluir favelas, que sempre foram pensadas à parte, no planejamento da cidade.
O arquiteto e urbanista Carlos Murdoch, coordenador da Universidade Veiga de Almeida, tem participado das reuniões de revisão do Plano Diretor e defende um novo texto com foco no “protagonismo metropolitano” do município do Rio.
— Qualquer plano da cidade precisa considerar uma visão metropolitana, porque temos uma população flutuante enorme. Se nos fecharmos dentro do nosso perímetro cartográfico, vamos continuar errando, porque o Rio não é só o que está no mapa. A população da Baixada Fluminense depende muito dos serviços da capital — afirma Murdoch.