Considerações sobre a Lei Complementar nº 219/2020 e o PLC nº 174/2020

Andréa Albuquerque G. Redondo

Além de vários conceitos questionáveis contidos na lei, a partir de incentivo da própria Prefeitura do Rio de Janeiro à construção irregular e  em desacordo com as leis urbanísticas vigentes mediante pagamento em moeda, as consequências práticas da LC 219/2020 – para a cidade em geral e para cada localidade – são preocupantes ainda que de difícil visualização.

Com a vigência e aplicação da LC 219/2020 não é possível conhecer ou antecipar o que será construído no Município do Rio de Janeiro, tanto nos terrenos vazios como o que poderá ser acrescentado aos prédios existentes, porque o parâmetro a ser liberado pela Prefeitura dependerá de cálculos feitos quarteirão a quarteirão, rua a rua, terreno a terreno, e do valor do qual o interessado disporá para pagar por andares e/ou metros quadrados a mais do que a lei determina. Proprietários ou usuários de imóveis residenciais e comerciais não saberão que tipo de construção surgirá em frente ou ao lado do seu terreno ou imóvel, nem que uso e atividade terão.

Na prática, a cidade deixa de ter índices construtivos determinados por lei, os quais que passarão apenas a constituir uma base que será modificada e moldada conforme variados interesses, seja de proprietários, empreendedores do mercado imobiliário e investidores, e da própria Prefeitura. O potencial construtivo estabelecido pelo Plano Diretor é simplesmente ignorado.

Ao modificar o ambiente urbano consolidado em toda a cidade sem critérios visíveis a priori, poderá causará transformações e impactos eventualmente negativos tanto nas características de regiões e quanto nos bairros, seja pela adoção dos gabaritos médios existentes, pelo acréscimo geral de mais um andar, interferindo na visibilidade, iluminação e ventilação de prédios e compartimentos, seja pelos novos usos e atividades imprevisíveis.

Do mesmo modo, dificultará aos gestores estabelecer prioridades e implementar políticas públicas de infraestrutura – transportes, saneamento, equipamentos públicos e urbanização em geral, de acordo com a expansão ou adensamento do tecido urbano municipal pois não será mais possível estimar os rumos da construção civil no território nem onde surgirão novas atividades comerciais e de serviços, nem o porte das edificações.

Quanto à Praça Mario Lago, situada no coração do Rio e conhecida por ‘Buraco do Lume”, é decisão equivocada em todos os aspectos. É desnecessária a construção de mais uma torre no centro da cidade em área que desde 1940 foi projetada para ser uma área livre (com exceção de um período na década de 1970) e assim vem sendo mantida há 80 anos. O Centro do Rio está abandonado e precisa de outro tipo de melhorias, de manutenção, incentivos à moradia, e ações sociais, enquanto outras regiões são carentes de investimentos imobiliários, como a Zona Portuária e a Zona Norte. É papel dos gestores públicos carrear recursos de modo a revitalizar espaços menos favorecidos, diretrizes contempladas no Plano Diretor da cidade.

Com os comentários abaixo esperamos colaborar para o melhor entendimento da nova lei de uso do solo em vigor para a cidade.

Obs.: Aspectos jurídicos estão contemplados no Parecer da Comissão de Direito Urbanístico da OAB Barra da Tijuca divulgado ontem.

Urbe CaRioca

Aspectos gerais decorrentes da aplicação da LC 219/2020 e da regulamentação pelo Decreto Rio nº 47796/2020 – válidos para quase totalidade do território municipal:

1. Aumenta o gabarito de altura e a volumetria das edificações novas e existentes e independentemente dos índices construtivos fixados para cada bairro ou região estabelecidos em lei e elaborados segundo características paisagísticas, geográficas, de adensamento, sociais, infraestrutura, e respectivas diretrizes para o desenvolvimento urbano estabelecidas pelos Planos Diretores, os quais contraria; a altura passa a ser definida pela média do número de andares dos edifícios existentes no quarteirão ou vizinhança próxima, conforme cada caso, considerados todos os pisos construídos e não apenas os andares padrão com apartamentos e unidades comerciais; foram excluídas as IV, V, VI RA e as subzonas A1 e A4 (Barra da Tijuca);

a . Exemplo – em rua cujo gabarito é de 5 (cinco) andares admitidos mais 2(dois) de garagem, 1(um) de áreas comuns e zelador, e 1(um) de cobertura, serão considerados 8(oito) pisos; no mesmo quarteirão, existindo edifícios construídos com base em leis anteriores e variando entre 10 e 25 andares, o novo gabarito será calculado pela média desses; desconsideram-se casas, provavelmente para manter a média mais alta;

2. Aumenta a área de construção de todos os edifícios residenciais ao retirar do máximo computável áreas de escadas e elevadores; não distingue prédios novos e existentes, o que incentiva a construir acréscimos também nos últimos;

3.  Permite mais de uma edificação coladas às divisas (=não afastada), pagando-se pelos afastamentos não cumpridos; daria margem a que afastamentos existentes fossem ocupados mediante pagamento por não distinguir lotes vazios de terrenos onde já foi construído um prédio colado às divisas; entretanto o Dec. nº 47796/2020, a regulamentação, afirma que “Art. 14. A aplicação do art. 8° da LC nº 219, de 2020, é válida apenas para pedidos de licenciamento…”, texto incoerente com o parágrafo único que prevê casos de legalização;

a.  Nota: por definição, as áreas dos afastamentos exigidos para as edificações afastadas das divisas são non-aedificandi, conforme dispõe o art. 112 do Regulamento de Zoneamento aprovado pelo Decreto nº 322/1976;

b. Do mesmo modo, o conceito está presente no parágrafo único do art. 14 da Lei n.º 1.574 de 11/12/1967, a chamada lei básica para o desenvolvimento urbano e regional do antigo Estado da Guanabara, hoje Município do Rio de Janeiro (“art. 14 … Parágrafo único. Nenhum afastamento ou área de ventilação e iluminação, exigidos para qualquer edificação, poderá, durante a sua existência, ser ocupado ou considerado como espaço livre para qualquer outra construção ou edificação”).

4. Áreas denominadas franjas das Áreas de Especial Interesse Social – AEIS: Aumenta o gabarito de altura em volta das AEIS (favelas, loteamentos irregulares e outras conforme art. 70 do Plano Diretor), com exceção dos imóveis situados na ZE-1 (Reserva Florestal), zonas de conservação ambiental similares à ZE-1, na área de abrangência das IV, V, IX, XX e XXVII RA e na AP-3.3;

a. AP-4 (Barra da Tijuca): mais um andar (pagamento sobre ATE excedente);

b. AP-1 (Centro), AP-2 (Zona Sul) e AP-3 (Zona Norte, exceto AP-3.3: gabarito de altura máximo existente até 10 (dez) andares (pagamento sobre ATE existente) – note-se que neste caso não é o gabarito médio;

c. nas zonas unifamiliares permite transformar casas em edificação multifamiliar e acrescentar 1(um) andar;

d. em terrenos situados nas franjas usos e gabaritos de uma zona podem avançar sobre a parte do mesmo situada em zona hierarquicamente inferior; Exemplo: nos terrenos com grande profundidade e frente para rua comercial, e nos terrenos com mais de uma frente (esquina ou não), cujas ruas pertencem a zonas comercial e residencial, zonas que tenham índices construtivos diferentes, os parâmetros definidos para o trechos com maior potencial construtivos poderão ser aplicados na totalidade da área.

5. Permite as atividades de empresas, consulados, asilos e similares, e hospedagem em todos os locais onde o uso residencial é permitido – em toda a cidade, portanto – e em ZE-1 (Reserva Florestal) mediante pagamento.

6. Áreas de uso residencial unifamiliar na AP-4 e AP-5 com testada para vias do sistema BRT: permite transformar o uso para comercial e de serviços; o pagamento será exigido apenas para os imóveis localizados nas Avenida das Américas, Avenida Embaixador Abelardo Bueno e Ayrton Senna;

a. Nota: para dimensionar o alcance desse item é preciso cotejar os bairros atravessados pelo BRT na AP-4 e na AP-5 com os trechos onde o zoneamento é residencial unifamiliar, em especial as RAs de Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz, e a XXIV RA (Barra da Tijuca) onde há condomínios de casas.

Mapa das Estações (Clique sobre a imagem para ampliar)

7. Além do aumento geral no número de andares, volumetria, Área Total de Edificação – ATE e ocupação de áreas de afastamento, a LC 219/2020 permite acrescentar um andar de cobertura em todas as construções com mais de três pavimentos “construídas afastadas ou não afastadas nas divisas em conformidade com as condições da legislação em vigor”; não esclarece se é aplicável aos prédios onde já foram construídos e/ou legalizados com aplicação de leis de “mais-valia” anteriores.

Aspectos decorrentes da LC 219/2020 que modificam parâmetros em locais específicos:   

1. Permite transformar unidades residenciais, apartamento de zelador e áreas comuns situados no andar térreo das edificações residenciais multifamiliares em lojas e salas comerciais, tornando-as edificações mistas; não se aplica às “zonas de uso exclusivamente residencial unifamiliar, exceto no que já for permitido por normas especiais vigentes para o local de situação do imóvel”. Embora seja aplicável em toda a cidade os efeitos e impactos eventualmente negativos serão sentidos na vizinhança, na medida em que as transformações ocorram rua a rua.

2. Permite transformar, apartamento de zelador e áreas comuns em novas unidades residenciais; não esclarece se pátios descobertos e áreas de recreação poderão ser cobertos e eliminados, respectivamente.

3. Modifica a aplicação do art. 448 da Lei Orgânica do Município – o artigo determina que “Qualquer edificação colada nas divisas não poderá ultrapassar a altura de doze metros, seja qual for o uso da edificação ou do pavimento, admitidas as exceções que a lei estabelecer”. A norma se aplica aos bairros que não dispõem de leis urbanísticas específicas (Projeto de Estruturação Urbana – PEU ou norma similar, conforme Lei nº 1654 de 09/01/1991); a LC 219/2020 permite que “em terreno situado entre duas edificações não afastadas das divisas, poderá ser aplicado o gabarito médio das edificações limítrofes, de forma a complementar o padrão de ocupação da quadra”. Não distingue terrenos vazios e prédios já construídos nem esclarece qual é o “gabarito máximo em vigor pela legislação local” (§1º art.10 LC 219/2020), pois o número de andares pode variar conforme o prédio seja afastado ou não das divisas. Sendo normas que atingem praticamente a cidade inteira é imprevisível a morfologia que resultará em cada rua edificada.

4. Nos os clubes existentes nas Áreas de Planejamento AP-5 (Zona Oeste) e AP-3 (Zona Norte), com uso consagrado na forma da LC nº 83 de 19/06/2007, libera a ocupação de 10% da área do imóvel outros usos permitidos para o local, exceto construção multifamiliar;

a. Nota: O alcance só poderá ser estimado após levantamento de todos os clubes naquelas               condições, com localização e zoneamento vigente.

5. Praça Mário Lago (local no Centro do Rio conhecido como ‘Buraco do Lume’): Revoga o Decreto nº 6159 de 30/09/1986 que limitava a construção no local a uma edificação com altura de 17,00m, área livre de 60% sem estacionamento e destinada a atividades culturais. A decisão abre caminho para a construção de uma torre comercial no local. Foram mantidas a área livre, prédio com pilotis, a proibição de estacionamento no terreno livre e da construção de muros.

“Pra inglês ver” – Enquanto leis perniciosas são produzidas, debate-se o Plano Diretor do Rio de Janeiro

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