CrôniCaRioca
Beco (Dicionário Houaiss) – subst. masculino – 1 rua estreita e curta, por vezes sem saída; ruela – 2 Regionalismo: Ceará. m.q. esquina
Chamávamos o lugar de Beco. Ruas nem tão estreitas nem tão curtas aos olhos de uma menina pequena, saídas havia. Quatro entradas, portanto, quatro saídas. Beco, ainda que diferente.
Nos anos 1950 e 1970, Zona Sul da Cidade Maravilhosa, a relação dos moradores com as ruas, por certo menos intensa do que na Zona Norte, ainda era rica. O espaço formado pelas vias internas do conjunto de três edifícios, que ainda existe no bairro do Flamengo, era meu e de todos. Quanto aos prédios, um tinha frente para a Rua Almirante Tamandaré e outro para a Rua Machado de Assis. O terceiro era voltado à Praia do Flamengo. Neste morei ao nascer, em apartamento térreo bem pertinho da vida citadina: são os Edifícios Nobre, Anchieta e Barth construídos pela Companhia Construtora Nacional em 1940 – a mesma que ergueu os hotéis Copacabana Palace, Glória e o Edifício A Noite. Ladeiam e delimitam as vias internas, então abertas para quem quisesse passar, cortar caminho, ou apenas conhecê-las. Carros entravam para estacionar ou ter acesso às garagens, em subsolo, iluminadas pela luz que passava através de tijolos de vidro no teto, o piso do pátio interno comum – ou área de iluminação e ventilação, ‘prisma’ para os acostumados aos Código de Obras.
Mas, eu não sabia disso. Era criança e os vidros, estrelinhas. Privado e público a um só tempo, lugar de velocípedes, patinetes e bicicletas dos pequeninos entre carrinhos de neném, bolas e joguinhos infantis, como saber que vivia em espaço urbano peculiar e agradável, usufruía desenho proto-moderno, primórdios de “pilotis” e “playgrounds” acima do solo que surgiriam com força na década de 1970?
Aos três anos trocamos o apartamento térreo por um no segundo andar do prédio n. 21, na Tamandaré. Fora do rés-do-chão, de lá ouvia os passarinhos que moravam na casa de Herbert Moses. Também observava a área coletiva no meio da quadra, quando aprendi que havia muito mais gente no mundo além de mim. Novidade urbano-carioca, o Edifício Veleiro, assim batizado por meu pai, tinha garagem no térreo. Era o início das benesses urbanísticas que incentivariam a verticalização da cidade, mantida até hoje com os incompreensíveis andares “que não contam no gabarito”, coisa que também não sabia, era criança.
Quando eu era criança, brincando sozinha na sala olhei pela janela e vi muitas janelas lá longe. Pensei que atrás de alguma podia ter uma criança brincando, que eu não a conhecia, e ela também não sabia que eu existia. Nesse dia descobri de uma vez só a ignorância, o desconhecimento, o meu ser, a individualidade, e que no mundo tinha mais gente do que eu podia ver. Aprendi que as janelas eram dos apartamentos de outros prédios. …cresci… descobri que eu morava de fundos para uma ‘área coletiva’ … que as áreas coletivas haviam sido inspiradas no Plano Agache, e serviam para ventilar e iluminar os quartos, salas e cozinhas. Eram espaços non-aedificandi ‘sagrados’ onde nada podia ser construído – um exemplo de área coletiva animada está no filme Janela Indiscreta, de Hitchcock: o protagonista fica xeretando a vida dos outros pela janela virada para a área interna da quadra. Uns Secretários deram umas canetadas e algumas áreas coletivas foram invadidas por edifícios…
Quando eu era criança, 12/10/2013
Passarinhos são poucos, poderia haver mais para me acordarem bem cedinho como nos tempos da Tamandaré, minha janela ao lado da casa de Herbert Moses, um casarão cercado de árvores onde hoje fica o nº 200, espigão em desarmonia com os outros prédios da Praia do Flamengo. Benesses urbanísticas dos anos 1970 perpetuadas no tempo…
Rio: crônica viva, agonia, e êxtase, 23/12/2014
A garagem abrigava o Ford 50 e nossas brincadeiras, mais um espaço para diversão, somado ao do Beco para onde levei os novos amiguinhos. Bastava atravessar a rua! No prédio brincávamos de ‘Pique-esconde’, ‘Mamãe posso ir?’ e ‘Batatinha-frita Um, Dois, Três!’. Que besteira, correr de olhos fechados gritando “batatinha-frita” e parar no “três”! Meu irmão não parou quando gritei ‘três’, bateu com a cabeça no muro, eu ri, ele me deu um golpe de judô, caí de barriga chão, perdi o fôlego, quase desmaiei, e a querida Neuza me salvou. Sobrevivi para contar a estória.
Do outro lado do muro que bateu na cabeça do meu irmão havia o casarão misterioso e as árvores frondosas que atiçavam a imaginação das crianças. Jogávamos a bola de propósito em diração ao terreno vizinho para provocar uma aventura: ir até o portão e gritar por alguém na esperança de entrar no que parecia cena de um filme de terror. Nunca funcionou! Uma pessoa prestativa devolvia a bola e só. Como tantos palacetes espetaculares, aquele também seria demolido para dar lugar a uma torre altíssima em desarmonia com as construções na orla, então os edifícios de treze andares substitutos das casas antigas, sob os desenhos de quarteirões inspirados no Plano Agache.
Aos oito anos, como saber que uma lei urbanística perniciosa iria vigorar de 1970 a 1975, liberar gabaritos até o céu e causar tantos estragos à magnífica paisagem carioca? Tempos depois a lei mudou, construir edifícios muitos altos passou a ser permitido só no Centro do Rio e na Barra da Tijuca. Hotéis, no entanto, continuaram agraciados durante mais uma década. Que o digam os espetos em Copacanaba, entre outros. Tal benesse também acabou nos anos 1980, mas, infelizmente, ressurgiu para “incentivar” os hotéis ditos “Pra Olímpiada”, muitos ainda vazios. Agora querem transformá-los em prédios residenciais! Quando aprendi tudo isso aquela criança havia crescido, mas o beco das boas lembranças vivia nela.
Aos onze anos passamos para o prédio nº 57 da mesma rua, onde aconteciam as Festas de Natal inesquecíveis que uniam a Estrela-Guia e a Estrela de David. Chama-se Edifício Almirante Tamandaré, o mesmo nome da rua que homenageia o patrono da Marinha! Minha mãe cantava a ária de La Bohéme da qual tanto gostávamos, rodopiando pela sala e feliz com a expectativa de morar em casa maior! A rua era animada, novas amizades surgiram na adolescência, algumas do Beco e do prédio nº 21 mantidas até que a vida impusesse seus desejos. Doce adolescência.
Nem criança nem adulta, impossível prever tantas mudanças no perfil edificado da Cidade, o crescimento exponencial da violência que nos transformou em criaturas enjauladas em busca de proteção atrás de grades e câmeras de segurança, e o consequente prejuízo à relação dos moradores com as áreas públicas, estas que deviam ser lugares de confraternização e alegria.
Na Tamandaré, caminhar sob os oitis agora é estar ladeado por gradis. As meninas que brincam na parede de mosaico do querido prédio número 50 só podem ser vistas através das barras. Na galeria comercial, o nosso ‘mercadinho’, não há mais creme-de-leite fresco – os ‘boxes’, mini-lojinhas sem banheiro, também foram banidos do Código de Obras. Ao menos o prédio Art-Decó que fica em frente ao 21, onde morava uma costureira famosa, continua lindo, que bom! É o número 20, foi construído em 1928, e se chama Edifício Tamandaré! Será que os pardais continuam a fazer algazarra ao final da tarde?
Quanto ao beco…
Os acessos ao antigo beco pelas ruas laterais hoje estão fechados com muros altos. Pichados ou pintados com obras de arte, conforme se prefira ler. Na Praia do Flamengo há os inescapáveis portões, não para que evitar que alguém escape, mas para que estranhos não entrem, sinal dos tempos. Provavelmente crianças ainda enfeitam o beco. Não se as vê, estão intramuros.
Que as lembranças singelas nesse Dia das Crianças sirvam como alento e esperança de que o Rio mude outra vez, e que mude para melhor. Que as crianças e adolescentes de hoje possam construir memórias agradáveis, longe dos obstáculos e grades que nos separam e amedrontam. Que as ações do Poder Público para a cidade reflitam um futuro urbano-carioca feliz.
Somos todos crianças.
Andréa Albuquerque G. Redondo
Urbe CaRioca
Imagens: Google Maps, Google Street View e Acervo de Família