Neste artigo, publicado originalmente no site “A Sociedade em Busca do seu Direito”, a professora e jurista Sonia Rabello destaca a falta de planejamento dos administradores municipais em relação à implantação de infraestrutura de Transportes, partindo da análise dos casos do Rio de Janeiro e de Cuiabá.
Na última quinta-feira, no Rio, o prefeito da Cidade anunciou a sua proposta de substituição dos atuais corredores do BRTs Transcarioca e Transoeste – que ele mesmo mandou construir para Copa e para a Olimpíada – pelo sistema VLTs. Ao mesmo tempo, voltou ao noticiário a polêmica obra inacabada, há quase oito anos, do VLT de Cuiabá . Em 2020, o prefeito daquela cidade teria decidido, ao contrário do anunciado no Rio, transformar o VLT em BRT, após a obra estar 60% pronta’, e tendo custado mais de R$ 1 bilhão.
Urbe CaRioca
Rio e Cuiabá: VLTs “desplanejados” seguem o trilho do caos urbano
Sonia Rabello
Na última quinta-feira, dia 7 de julho, no Rio de Janeiro, o prefeito da Cidade anunciou, com pompa e circunstância [1], a sua proposta de substituição dos atuais corredores dos BRTs Transcarioca e Transoeste – que ele mesmo mandou construir para a Copa e para a Olimpíada há cerca de nove anos – pelo sistema de Veículos Leve sobre Trilhos (VLTs). Neste anúncio apenas não incluiu o BRT da Avenida Brasil, obra que se arrasta, no mínimo, há sete anos. Este não ou só após terminar a obra?
Ao mesmo tempo, voltou aos noticiários a polêmica obra inacabada, há quase oito anos (!), do VLT de Cuiabá [2] (projeto incluído nas “obras da Copa de 2014”), e que recebeu uma vistoria técnica da Comissão de Viação e Transporte da Câmara Federal nesta sexta-feira, dia 8. Retornou à mídia porque o prefeito de Cuiabá teria decidido [3], em 2020, o inverso do prefeito do Rio, ou seja, transformar o VLT de lá em BRT. Ele teria anunciado a sua decisão apesar daquela obra já estar “60% pronta, e tendo custado mais de R$ 1 bilhão provenientes de recursos públicos – União/BNDES/FGTS”. [4]
Ou seja, cada prefeito, a seu bel-prazer, sem qualquer alusão a um inexistente Plano de Mobilidade, resolve simplesmente se aventurar em fazer, transformar projetos ou realizar obras caríssimas na infraestrutura de Transportes, modificando até mesmo as ações que ele mesmo fez ou começou a fazer há menos de uma década, como isto fosse algo corriqueiro ou viável.
Não se trata de um prejulgamento do mérito de qualquer das decisões acima, transformar os BRTs em VLTs, ou o contrário. Mesmo porque, para não cair nos mesmos “achismos” dos governantes, precisaríamos ter acesso, de forma transparente, aos estudos técnicos-financeiros que embasaram tais decisões, bem como as análises de suas compatibilidades como os respectivos Planos de Mobilidade Municipais destas cidades. E, após pesquisas e acesso aos devidos canais, observa-se que nenhuma dessas cidades têm o seu Plano de Mobilidade Urbana aprovado, e nem os estudos técnico-financeiros que fundamentaram tais escolhas políticas.
Portanto, o maior equívoco em matéria de mobilidade urbana é tomar decisões de tal monta sem que estas sejam estudadas, desenhadas, discutidas, aprovadas e previstas no Plano de Mobilidade Urbana do Município! Este é o grande erro dos administradores das cidades: desprezam o planejamento e, nesta ignorância e arrogância, dão continuidade ao infinito desperdício de recursos públicos e à inconsequência das obras públicas ineficientes, mal financiadas e até inacabadas.
Há, nestes anúncios, um notório descumprimento da norma nacional sobre a Mobilidade Urbana – a Lei federal 12587/2012 [5]. Esta norma não é uma lei “para inglês ver”. Teria de ser observada. E, se ela não for cumprida, cabe aos órgãos de fiscalização e controle exigir o seu cumprimento pela administração municipal.
No caso do Rio, há inclusive a “zombaria” de se ver publicado o plano do plano [6], que seria concluído em 2015. E “cadê” ele? Ou seja, todas as obras milionárias dos BRTs foram feitas sem observância de um Plano de Transporte integrado para a Cidade. Uma sequência de erros cometidos desde então.
Como salvar as cidades de tanto caos e “desplanejamento” decorrentes da inconsequência e da esbórnia financeira das decisões dos políticos em matéria de infraestrutura de transporte? Quais são os órgãos de controle do Município? Podemos citar vários, e todos muito bem pagos: os Tribunais de Contas e as Câmaras Municipais, os Ministérios Públicos e até o Judiciário (se e quando assim provocado por meio de uma ação). Mas, raramente, se vê eficiência e controle deles na exigência no cumprimento da lei federal. Então, eles também são responsáveis.
E o que diz a lei nacional sobre a política de mobilidade urbana, que deve ser cumprida? Ela determina que as ações que digam respeito à mobilidade urbana sigam o planejamento, instrumentalizado no Plano de Mobilidade Urbana do Município.
Abaixo, o texto da lei. Seu descumprimento e sua falta de controle pelas autoridades competentes para tal são a causa que permite que delírios administrativos sigam em frente, consumindo ainda mais energia e dinheiro público da nossa já carente sociedade.
“Art. 24. O Plano de Mobilidade Urbana é o instrumento de efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana e deverá contemplar os princípios, os objetivos e as diretrizes desta Lei, bem como:
I – os serviços de transporte público coletivo;
II – a circulação viária;
VII – os polos geradores de viagens;
VIII – as áreas de estacionamentos públicos e privados, gratuitos ou onerosos;
IX – as áreas e horários de acesso e circulação restrita ou controlada;
X – os mecanismos e instrumentos de financiamento do transporte público coletivo e da infraestrutura de mobilidade urbana; e
XI – a sistemática de avaliação, revisão e atualização periódica do Plano de Mobilidade Urbana em prazo não superior a 10 (dez) anos.
- 1º Ficam obrigados a elaborar e a aprovar Plano de Mobilidade Urbana os Municípios: (Redação dada pela Lei nº 14.000, de 2020)
I – com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes; (Incluído pela Lei nº 14.000, de 2020)
II – integrantes de regiões metropolitanas, regiões integradas de desenvolvimento econômico e aglomerações urbanas com população total superior a 1.000.000 (um milhão) de habitantes; (Incluído pela Lei nº 14.000, de 2020)
III – as infraestruturas do sistema de mobilidade urbana, incluindo as ciclovias e ciclofaixas; (Redação dada pela Lei nº 13.683, de 2018)
IV – a acessibilidade para pessoas com deficiência e restrição de mobilidade;
V – a integração dos modos de transporte público e destes com os privados e os não motorizados;
VI – a operação e o disciplinamento do transporte de carga na infraestrutura viária;
VII – os polos geradores de viagens;
VIII – as áreas de estacionamentos públicos e privados, gratuitos ou onerosos;
IX – as áreas e horários de acesso e circulação restrita ou controlada;
X – os mecanismos e instrumentos de financiamento do transporte público coletivo e da infraestrutura de mobilidade urbana; e
XI – a sistemática de avaliação, revisão e atualização periódica do Plano de Mobilidade Urbana em prazo não superior a 10 (dez) anos.
- 1º Ficam obrigados a elaborar e a aprovar Plano de Mobilidade Urbana os Municípios: (Redação dada pela Lei nº 14.000, de 2020)
I – com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes; (Incluído pela Lei nº 14.000, de 2020)
II – integrantes de regiões metropolitanas, regiões integradas de desenvolvimento econômico e aglomerações urbanas com população total superior a 1.000.000 (um milhão) de habitantes; (Incluído pela Lei nº 14.000, de 2020)
III – integrantes de áreas de interesse turístico, incluídas cidades litorâneas que têm sua dinâmica de mobilidade normalmente alterada nos finais de semana, feriados e períodos de férias, em função do aporte de turistas, conforme critérios a serem estabelecidos pelo Poder Executivo. (Incluído pela Lei nº 14.000, de 2020)
- 1º-A. O Plano de Mobilidade Urbana deve ser integrado e compatível com os respectivos planos diretores e, quando couber, com os planos de desenvolvimento urbano integrado e com os planos metropolitanos de transporte e mobilidade urbana. (Incluído pela Lei nº 14.000, de 2020)
- 2º Nos Municípios sem sistema de transporte público coletivo ou individual, o Plano de Mobilidade Urbana deverá ter o foco no transporte não motorizado e no planejamento da infraestrutura urbana destinada aos deslocamentos a pé e por bicicleta, de acordo com a legislação vigente.
- 4º O Plano de Mobilidade Urbana deve ser elaborado e aprovado nos seguintes prazos: (Redação dada pela Lei nº 14.000, de 2020)
I – até 12 de abril de 2022, para Municípios com mais de 250.000 (duzentos e cinquenta mil) habitantes; (Incluído pela Lei nº 14.000, de 2020)
II – até 12 de abril de 2023, para Municípios com até 250.000 (duzentos e cinquenta mil) habitantes. (Incluído pela Lei nº 14.000, de 2020)
- 5º O Plano de Mobilidade Urbana deverá contemplar medidas destinadas a atender aos núcleos urbanos informais consolidados, nos termos da Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017. (Incluído pela Lei nº 13.683, de 2018)
- 7º A aprovação do Plano de Mobilidade Urbana pelos Municípios, nos termos do § 4º deste artigo, será informada à Secretaria Nacional de Mobilidade e Serviços Urbanos do Ministério do Desenvolvimento Regional. (Redação dada pela Lei nº 14.000, de 2020)
- 8º Encerrado o prazo estabelecido no § 4º deste artigo, os Municípios que não tenham aprovado o Plano de Mobilidade Urbana apenas poderão solicitar e receber recursos federais destinados à mobilidade urbana caso sejam utilizados para a elaboração do próprio plano. (Redação dada pela Lei nº 14.000, de 2020)
Art. 25. O Poder Executivo da União, o dos Estados, o do Distrito Federal e o dos Municípios, segundo suas possibilidades orçamentárias e financeiras e observados os princípios e diretrizes desta Lei, farão constar dos respectivos projetos de planos plurianuais e de leis de diretrizes orçamentárias as ações programáticas e instrumentos de apoio que serão utilizados, em cada período, para o aprimoramento dos sistemas de mobilidade urbana e melhoria da qualidade dos serviços.
Parágrafo único. A indicação das ações e dos instrumentos de apoio a que se refere o caput será acompanhada, sempre que possível, da fixação de critérios e condições para o acesso aos recursos financeiros e às outras formas de benefícios que sejam estabelecidos.”
É o que temos para hoje, no caos urbano das nossas cidades “desplanejadas”!
*Sonia Rabello, jurista, professora colaboradora do Lincoln Institute of Land Policy (EUA) no Programa de Capacitação para América Latina, ex-procuradora-geral do município do Rio de Janeiro e professora titular na FDir/UERJ (aposentada)
Notas e referências
[2]https://www.cuiaba.mt.gov.br/governo/prefeito-acompanhara-vistorias-da-comissao-de-viacao-e-transportes-da-camara-federal-as-obras-do-vlt/27926
[3] https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2020/12/18/vlt-obra-de-trem-prevista-para-a-copa-nao-anda-ha-seis-anos.ghtml
[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm
[6] https://www.rio.rj.gov.br/web/pmus/sobre