VLT DO RIO ATROPELA A LEI E O PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE, de Sonia Rabello

A inaceitável destruição do calçamento “pé-de-moleque” encontrado na Rua da Constituição, feita sorrateiramente durante o fim-de-semana – divulgada pelo grupo S.O.S. Patrimônio e por este blog na segunda-feira – ainda repercute através da grande imprensa e em sites importantes, como é o caso de Sonia Rabello – A Sociedade em busca do seu Direito.

Reproduzimos artigo publicado ontem pela professora e jurista, cujo texto –  leitura é imprescindível reforça a indignação de centenas de cariocas e defensores do patrimônio cultural do Rio de Janeiro. A seguir estão links e trechos de notícias recentes, uma que contém ironias: quem destruiu o piso histórico batizou um trem de VLT de ‘João do Rio‘, homenagem ao cronista do Rio Antigo apenas para inglês ver, esta uma expressão usada por pretensos “espertos” no tempo da Escravidão, época do piso que deveria ser preservado.


Ao contrário, a descoberta foi descartada pelo gestor da vez no ano em que se comemoram quatro séculos e meio de fundação da Cidade.
Urbe CaRioca
A destruição, com retro-escavadeira, no último fim-de-semana,
Foto: Marcus Alves, 26/10/2015


Sonia Rabello, 29.out.2015

A notícia de violência contra o Patrimônio Cultural da Cidade, relatando-se que uma rua de pé-de-moleque foi destruída por tratores para dar passagem ao futuro Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e que irá transitar no Centro do Rio chocou os cariocas.
Tudo se passou num piscar de olhos. Subitamente, enquanto a sociedade se movimentava para garantir a preservação daquele indubitável documento histórico da Cidade, com um abaixo assinado pelo seu tombamento, a empresa e/ou a Prefeitura, dotada de todo o seu arsenal administrativo, já teria obtido um nada obsta do IPHAN para continuar as obras, preservando um resquício ridículo daquele patrimônio cultural.
Ninguém sabe ainda quem e com que base técnica foi dado o parecer e a autorização para esta destruição, obviamente.  Mas ficam algumas indagações.
1. Se o bem não era tombado, por que então preservar o resquício dele?  
2. Se o bem cultural, embora não tombado, tinha valor cultural federal – o que justificaria a intervenção do IPHAN quanto a questão do tombamento – dever-se-ia acautelá-lo, provisoriamente, para em estudo técnico, ainda que célere, verificar, em que extensão ele deveria ser preservado.  
E, neste caso, não bastaria uma manifestação somente da Superintendência do Rio, mas também da Presidência do IPHAN, para a preservação provisória. Foi o caso?  Preservou-se 15 metros por decisão de quem? Por que só este “pedaço” teria valor cultural para tombamento?
3. Mas, se o caso não fosse de tombamento, e sim de preservação arqueológica, a questão é mais complicada, para se compreender a suposta autorização do IPHAN.  Isso porque os bens arqueológicos são protegidos por força de lei e não de ato administrativo, embora haja dúvidas quanto ao alcance deste entendimento aos bens históricos.  
E, como se esta incompreensível ação do IPHAN não bastasse (conforme divulgada pela imprensa, já que o órgão não se dignou, como de hábito, a fazer qualquer nota ou esclarecimento público a respeito, desprezando, solenemente, a sociedade carioca que lhe dá apoio), ainda há outras considerações a serem feitas. Vejamos:
O achado da rua em pé-de-moleque foi uma descoberta arqueológica, como foram outras em várias áreas de obras no Rio, especialmente na área portuária, onde aconteceu o maior deles, o Cais do Valongo, que é objeto de proposta para patrimônio mundial.  
A exigência da pesquisa arqueológica para estas obras é obrigatória também em função da norma municipal – decretos 22.872 e 22873 de 2003, e também em função do disposto na Lei Orgânica do Município, art.30, XXX, e art. 350.

Rua da Constituição, Centro, sexta-feira, 25/09/2015Foto: Marconi Andrade
O Globo – 27/10/2015
Tinha uma pedra no meio do caminho do Veículo Leve sobre Trilhos. Uma não, milhares, todas com quase 200 anos, do tempo em que a Rua da Constituição, no Centro, chamava-se Rua dos Ciganos. Há poucas semanas, a prefeitura anunciou a descoberta do calçamento de pé de moleque e a vontade de preservá-lo. Em reportagem do GLOBO, publicada dia 17, município e concessionária VLT Carioca contaram ter encaminhado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) proposta de adequação de projeto, de modo a preservar uma porção do antigo piso.
Na segunda-feira, veio a realidade.

Destak – 27/10/2015
O pesquisador Marcus Alves, membro do grupo, flagrou a retirada a caminho do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), na última segunda, para entregar a petição.
“O fim de um sonho. Neste fim de semana, aproveitando da situação de um Centro da cidade vazio, foi destruído o calçamento histórico da rua da Constituição. E com ele a memória de um Rio Colonial”, denunciou ele na página do S.O.S Patrimônio do Facebook.
A historiadora Sheila Castelo, umas das idealizadoras do grupo, disse ao que a ideia era criar um roteiro histórico na região. “Já imaginou que roteiro maravilhoso passaria a oferecer nossa cidade?”, sugeriu. “Imagine, então, se todos estivessem próximos ao circuito do VLT?”.

Estadão – 29/10/2015
“O calçamento era do fim do século 18 e início do século 19. Em alguns trechos dava para perceber os pisos sobrepostos dos dois séculos. Em uma pequena parte era possível ver até o resto do trilho do bonde, que é do início do século 20. Agora, tudo isso está coberto por terra”, lamentou o historiador Marcus Alves, do Arquivo Nacional.
“O slogan da prefeitura para as obras em regiões históricas do Centro é “Ao mesmo tempo em que o Rio se moderniza, a cidade redescobre o passado”. A frase consta da placa instalada na Rua da Constituição, com informações sobre as obras. O pé de moleque é formado por pedras arredondadas, de tamanhos variados e alinhadas de maneira desigual, como acontece, por exemplo, no centro histórico do município de Paraty (RJ).

O Globo – 30/10/2015
  

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