Mapeamento recente revela que, atualmente, 37 imóveis municipais, estaduais e federais estão ocupados irregularmente na Cidade do Rio de Janeiro. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a Prefeitura legaliza obras irregulares para aumentar a arrecadação do Município e beneficiar os proprietários de imóveis da cidade dita “formal” (e, em especial na Zona Sul e na Barra da Tijuca), as favelas continuam a crescer de forma desenfreada.
A legalização de obras que contrariam as leis urbanísticas vigentes, e a possibilidade de pagar antecipadamente para construir fora-da-lei será mais uma vez reeditada, tendo o prefeito já enviado à Câmara de Vereadores outro projeto de lei de “mais valia” e da ainda mais inacreditável “mais-valerá”: o PLC nº 88/2022, lei bizarra e eterna que, naturalmente, não se aplica às favelas, onde tudo vale e de graça.
Áreas públicas são invadidas, tomadas pela certeza da impunidade e pelas inúmeras demandas por habitação que há décadas não são atendidas pelas três esferas governamentais. Incluem-se nesse rol mais do que emergencial, todas as aguardadas ações de infraestrutura e urbanismo, de forma realmente efetiva e planejada, que pautam as promessas de campanha, mas que não se efetivam durante o entra e sai das gestões. E, é claro, ao mesmo tempo controlar o crescimento das favelas consolidadas, tarefa que a cada dia se torna mais difícil.
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Como nasce uma favela: vazio em 2017, terreno público em Benfica hoje é tomado por vielas e abriga centenas de apartamentos
Mapeamento revela 37 imóveis municipais, estaduais e federais ocupados irregularmente entre 234 vistoriados por gabinete de vereador
Por Selma Schmidt – O Globo
04 de setembro de 2022 – Link original
O terreno, público, quase abrigou uma clínica da família. Mas o que surgiu por lá foi uma comunidade de nome singelo: Deus Que Me Deu. Num espaço de cinco anos, construções irregulares tomaram a área de 4.317 metros quadrados que consta dos cadastros do governo do Estado do Rio de Janeiro e da União. Os moradores da favela instalada em Benfica têm como vizinhos ilustres o Cadeg e o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, o Pedregulho, edifício sinuoso tombado pelo patrimônio, projetado pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy.
A Deus Que Me Deu nasceu e cresce sem freios, na Rua Capitão Félix 576, esquina com a Ferreira de Araújo. A ferramenta digital Google Street View revela que, em 2017, a área estava cercada e praticamente vazia. Em 2019, já se notam algumas construções. Hoje há vários prédios — um chegou ao quinto pavimento —, centenas de apartamentos e vielas de terra batida.
O terreno é um dos 37 bens públicos ocupados irregularmente mapeados pelo gabinete do vereador Pedro Duarte (Novo) em três bairros: Benfica, São Cristóvão e Vasco da Gama. A equipe do parlamentar vistoriou 234 imóveis na região, que constam de listas do município, do estado e da União. Os bairros integram o chamado “super-Centro”, no projeto do novo Plano Diretor da cidade, em tramitação na Câmara Municipal. Esse perímetro, conforme a proposta, é considerado área prioritária para requalificação e adensamento, por ser próximo ao Centro, além de ter boa infraestrutura urbana e de serviços.
Um misto de “construtora” e “imobiliária”, ligado ao grupo criminoso que controla a favela do Tuiuti, se implantou no terreno de Benfica. Há pouco mais de dois anos, o pedreiro Vitor Silva Teixeira e seu pai, também pedreiro, ocuparam um trecho do que se tornaria a Deus Que Me Deu. Construíram ali sua casa, fugindo do aluguel de R$ 1.000 por um quarto e sala. De quebra, pai e filho exercem no próprio local a profissão, erguendo outros prédios com pequenos apartamentos para aluguel.
— Hoje, trabalho perto de casa, o que é muito bom. Temos muita obra para fazer. E saímos do aluguel. Quando chegamos, ocupamos. Diziam que o terreno era de uma senhora — conta Vitor, de 22 anos. — Ouvi falar que vão colocar luz e redes de água e esgoto. Um rapaz do Tuiuti está montando até uma associação de moradores.
Tal ocupação, diz Pedro Duarte, aponta por um lado para “o conhecido déficit habitacional da cidade”, e, por outro, para “a ineficiência do poder público para gerir o problema”:
— Seria muito melhor que o governo tivesse usado o local para programa habitacional. Da forma como a ocupação vem sendo feita, aos trancos e barrancos, há riscos para os próprios moradores. Os imóveis vêm sendo construídos sem ter o acompanhamento de um engenheiro ou um arquiteto, ou seja, de um profissional que garanta a qualidade da obra. O poder público vai deixando rolar solto. É muita irresponsabilidade.
Loja por R$ 70 mil
Na Deus Que Me Deu , onde há cerca de 300 imóveis, já funcionam o borracheiro Fé em Deus, a Assembleia de Deus Palavra, Espírito e Vida e o Serjão do Óleo. Morador do Pedregulho, Sérgio Magalhães pagou R$ 70 mil, há seis meses, por uma loja de frente para a Rua Ferreira de Araújo, onde faz a troca de óleo de veículos.
— Valeu muito a pena pagar o que me pediram. Sigo pela minha rua e chego no portão do Vasco da Gama. Estou bem localizado e trabalhando na profissão que escolhi há 24 anos — afirma Serjão.
Já Patrícia Silva conseguiu emprego há três meses numa padaria inaugurada na comunidade. Ela mudou-se, com o marido e a filha de 8 anos, para o andar de cima.
— Pago R$ 1.000 de aluguel, mas moro perto do trabalho e posso dar atenção à minha filha.
A Secretaria estadual da Casa Civil alega que a parte do imóvel da Capitão Félix que pertence ao acervo do estado foi destinada, “por tempo indeterminado, ao município do Rio de Janeiro para a implantação de uma clínica da família”. A pasta havia dito que faria uma vistoria no terreno no dia 26 de agosto, mas nada informa sobre os resultados.
A Secretaria municipal de Saúde, por sua vez, argumenta que o espaço cedido seria pequeno para uma clínica da família e que há restrições para construção no local por estar próximo ao Pedregulho, que é tombado. Por isso, optou por erguer outra unidade, a 850 metros do endereço anteriormente cogitado, inaugurada no segundo semestre de 2016. Já a Secretaria do Patrimônio da União, vinculada ao Ministério da Economia, nada esclarece sobre o terreno, dizendo que o dado “está sendo diligenciado”.
Cadastros desatualizados
Na lista dos 37 imóveis ocupados irregularmente, conforme o mapeamento de Pedro Duarte, 17 são da União, sete do município, cinco do estado, um do INSS e um ainda está em nome do extinto Estado da Guanabara. O terreno de Benfica consta das relações de estado e União. Há ainda cinco imóveis que aparecem no cadastro da prefeitura, como “nada consta”, “outros” ou sem qualquer informação.
“Enfrentamos a situação da desatualização dos cadastros imobiliários enviados pelo poder público”, afirma o documento do mapeamento. Durante as vistorias, enfatiza, que alguns imóveis não constavam de nenhum cadastro e não puderam sequer ser contabilizados. É o caso de equipamentos como o Super Centro Carioca de Saúde (municipal), a Casa da Marquesa de Santos (estadual) e Colégio Pedro II (federal).
Dos 234 imóveis mapeados, 116 têm uso adequado (49,6%). Os demais estão ocupados irregularmente, subutilizados (como estacionamento ou postos de gasolina) ou desapareceram (viraram ruas ou praças, foram vendidos ou incorporados a terrenos vizinhos, embora ainda estejam nos cadastros dos órgãos públicos).
Presídios e escolas juntos
No documento, os técnicos chamam a atenção ainda para uma questão: em Benfica e São Cristóvão, presídios e escolas, equipamentos com finalidades muito diferentes, estão instalados em um mesmo terreno público ou áreas vizinhas. O Presídio Evaristo de Moraes, conhecido como Galpão da Quinta, é fronteira da Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, da Escola Municipal Mestre Waldemiro e da Creche Municipal Adalberto Ismael de Souza. Uma situação semelhante ocorre na Cadeia Pública José Frederico Marques, localizada do outro lado da rua de duas escolas municipais: a Alice do Amaral Peixoto e a Cardeal Leme.
Isso é motivo de preocupação para mães e responsáveis. A dona de casa Michele Damasceno, moradora do Parque Alegria, no Caju, faz orações para que não ocorra fuga da José Frederico Marques, durante o horário de aulas do filho Miguel, de 9 anos.
— Os bandidos mais perigosos vêm para essa cadeia. Depois, é que eles vão para outros presídios. Pensa só se alguém foge e entra na escola? Tenho medo, mas não tive alternativa. Não encontrei vaga para o meu filho perto de casa, e ele precisa estudar. A gente já mora em comunidade e passa por muitos sustos com operações e confrontos. Temos que enfrentar mais essa situação — lamenta Michele.
Este foi o terceiro mapeamento de imóveis públicos feito pelo gabinete de Pedro Duarte — um foi do Centro, e o segundo de Laranjeiras, Glória, Catete e Flamengo.
Por nota, a Secretaria estadual da Casa Civil afirma que o governo possui cerca de três mil imóveis. Cita ainda projeto encaminhado à Assembleia Legislativa definindo novas regras para a venda de imóveis estaduais e que “as ocupações irregulares identificadas são tratadas administrativa ou judicialmente”. A pasta não esclareceu quanto arrecada com o seu patrimônio.
De acordo com levantamento realizado no último mês pela Superintendência de Patrimônio Imobiliário do Rio, existem cerca de sete mil imóveis registrados em nome do município. Segundo o órgão, de janeiro a julho foram arrecadados R$ 60 milhões com o uso de áreas ou imóveis públicos do município por terceiros.
Pelo site do Ministério da Economia, há propostas para a compra de 38 imóveis da União no estado. A quarta tentativa de venda do prédio A Noite, na Praça Mauá 7, em julho, foi frustrada — no próximo dia 22, o prédio histórico, anunciado pela primeira vez por R$ 120 milhões, será oferecido por R$ 28,9 milhões. O órgão não informou quantos imóveis vendeu no estado desde o lançamento no Rio do feirão pelo novo modelo da Proposta de Aquisição de Imóveis (PAI), há um ano. Com seus imóveis no estado (o quantitativo não foi informado), de janeiro a junho foram arrecadados R$ 158,7 milhões, incluindo taxa de ocupação, aluguel, foro, laudêmio e alienações, entre outros.