Tropecei, quase morri: malditas calçadas!, de Joaquim Ferreira dos Santos

Da mesma forma que a qualidade das ruas é uma preocupação constante para quem dirige, o estado das calçadas é alvo de atenção para todos que têm o costume de caminhar em seu dia a dia. No Rio, infelizmente, é comum observarmos calçadas mal conservadas que dificultam a passagem, sobretudo para quem possui alguma condição especial que prejudique a locomoção.

Apesar disso, muitas pessoas desconhecem que a responsabilidade pela manutenção das calçadas existentes defronte aos imóveis e terrenos é do proprietário desses ou, conforme o caso, do respectivo Condomínio. Também devemos recordar que, conforme análises publicadas neste blog, a culpa não é da pedra portuguesa.

Por outro lado, a conservação das demais áreas públicas como, por exemplo, praças e canteiros centrais, permanece de responsabilidade do Poder Público, ou seja, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Esta deve dar o exemplo e cuidar do que lhe cabe, como do local onde o cronista Joaquim Ferreira dos Santos levou um tombo e acabou por tomar 12 pontos, na calçada ao lado da ciclovia da Lagoa Rodrigo de Freitas.

Vale a leitura !

Urbe CaRioca

Tropecei, quase morri: malditas calçadas!

Joaquim Ferreira dos Santos – O Globo – 11 de julho de 2021

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Calçada da Lagoa Rodrigo de Freitas | Reprodução da internet

Eu quase morri do mesmo mal, e imbuído de tal autoridade, em nome da Associação Carioca de Vítimas das Calçadas, quero externar a mais profunda solidariedade à eminente professora Claudia Costin.

Dias atrás, voltando do dentista, ela tropeçou numa dessas aberrações municipais e foi ao chão, o que resultou num prontuário médico de quatro pontos na testa, nariz fraturado e joelhos estropiados. Saúde, querida. Receba desde já as desculpas se aparento disputar recorde negativo. Comigo foi pior – e aqui, sem orgulho, apresento o registro de meus 12 pontos.

Um tropeção numa dessas malditas calçadas me jogou dentro de uma máquina de ressonância barulhenta, de onde saí meia hora depois com o diagnóstico do nariz em fratura alinhada e a necessidade da dúzia de pontos, ali onde a haste segura as lentes dos óculos. Caí de testa numa calçada da Lagoa. Quase passei desta para melhor.

Eu tenho tido cada vez mais medo de quase tudo. É vírus, é Bolsonaro, o mundo em volta é assustador. De todos os perigos nenhum é mais vizinho do que a calçada, aquela contra a qual não há máscara de proteção nem urna de votação para despachar o indigitado à sua insignificância. Eu tenho medo cotidiano dessa entidade criminosa aos nossos pés plantada e das suas versões espalhadas pela cidade.

Tem a calçada esburacada, a calçada desnivelada, a das pedrinhas portuguesas soltas, a que virou pista de bicicleta, a que serve de depósito para os supermercados, a que alberga mendigos, a que virou puxadinho da milícia e a que vai, como se fosse efeito visual de filme de terror, sendo levantada aos céus pelas raízes das amendoeiras.

No dia em que fomos mais felizes, havia casas simples com cadeiras na calçada. Era a passarela do paraíso carioca – e uma das maneiras de se contar a história recente do Rio é a partir dos acontecimentos em que ela serviu de cenário. A calçada é um arquivo. Foi onde J. Carlos viu a melindrosa, João do Rio conversou com os tipos populares, a garota de Ipanema enfeitiçou o poeta e, na Toneleros, Lacerda sofreu o atentado que derrubaria Getúlio.

Na calçada o cidadão fazia seus pactos de convivência, via como caminhava a humanidade municipal e, no usufruto de viver num cenário tão espetacular, respirava. Foi numa calçada dessas que quase parei de respirar.

Com a pandemia e o medo de frequentar academia, a ciclovia da Lagoa foi tomada por uma multidão desgovernada de ciclistas kamikazes se preparando para o Tour da França, de alucinados em motos elétricas, de caminhantes em zigue-zague e blitz de corredores em grupos. É uma aglomeração agressiva, o cada-um-por-si de sempre, agora na busca desesperada de saúde ao ar livre.

Foi aí, em busca de espaço para fugir do contágio dos sem máscara e do atropelamento pelos sem noção, que passei a correr na calçada ao lado da ciclovia. Deu ruim. Havia uma pedra mal colocada no meio do caminho, um pedaço de descaso fora da ordem do nivelamento. Foi onde tropecei. Caí de testa, quebrei os óculos e adentrei os procedimentos hospitalares descritos, tornando-me membro, assim como acontece agora com a professora Claudia Costin, da Associação Carioca de Vítima das Calçadas.

Não guardo rancor.

A vida pós-pandemia será a céu aberto, as calçadas serão fundamentais na reconstrução de nossa felicidade. É preciso apenas, como nas demais coisas ao redor desta cidade, voltar a civilizá-las.

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