Andréa Albuquerque G. Redondo
O de Alah, o do Flamengo: análise e relato

Os que acompanham este blog Urbe CaRioca conhecem a minha história profissional. Arquiteta da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Durante mais de três décadas trabalhei nos setores de licenciamento de obras civis particulares, participei da elaboração de leis urbanísticas, e atuei nos órgãos de proteção do Patrimônio Cultural edificado.
No início da carreira limitava-me a analisar o potencial construtivo dos terrenos e aprovar a construção de edifícios, função a mim destinada. Orientada com a firmeza de Newton Machado, Luiz Carlos Velho e Vilma Muricy, entrei no mundo das leis que regem o uso do solo. Mais adiante, com Flávio Ferreira, Sérgio Magalhães, Luiz Paulo Conde, Evelyn Furquim Werneck Lima, André Zambelli, Sonia Rabello e dezenas de outros colegas, aprendi a olhar a cidade como um todo. Aprendi que as construções em um terreno deveriam ser relacionar aos vizinhos, ao meio ambiente, à paisagem, ao pré-existente, conceitos corretos raramente considerados. Havia normas a respeitar.
Com olhos de ver, vi que o Rio era dono de um belo patrimônio cultural, ambiental e histórico que demandava salvaguardas, tal como os bens preservados com a edição da primeira Área de Proteção do Patrimônio Cultural – APAC para os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. A cidade continha construções de valor arquitetônico, singelos ou elaborados, individuais ou conjuntos urbanos, exceção à Barra da Tijuca, área de expansão sobre terrenos vazios ao contrário das regiões mais antigas, onde o processo intenso de renovação e substituição nos condenava a ser uma urbe sem memória.
Em 1996, ainda na antiga Secretaria Municipal de Urbanismo, atendi, em audiência, um pequeno grupo – arquiteto e construtores. Apresentariam a solução para o problema do Museu de Arte Moderna e jardins em torno, na época sofrendo com a falta de manutenção e de verbas para sua conservação. Ouvi atentamente a preleção sobre as dificuldades que persistiam anos após o incêndio, em 1978, que destruiu centenas de obras de arte. O remédio seria aprovar a construção de uma torre para escritórios, com 22 andares, ao lado do MAM, na extrema esquerda da área conhecida como “Aterro”, antes de consagrado o uso e o nome atual: Parque do Flamengo.
Finda a explicação, levantei-me e encerrei a audiência. Informei aos proponentes que o parque era uma área pública, livre, à exceção de monumentos e equipamentos urbanos previstos no projeto original; que a linha limite para edificar é física, chama-se “alinhamento”; separa os terrenos particulares dos logradouros públicos, isto é, ruas e praças e jardins. Exceções à parte, não se constrói nessas áreas, classificadas como non-aedificandi. Quase trinta anos depois a mesma solução mirabolante é apresentada para “salvar” o Jardim de Alah: uma construção comercial sobre a praça, diferente daquela na forma – horizontal -, e idêntica na essência – área coberta e com lojas, bares e restaurantes. Uma torre tombada sobre o bem tombado.
Os discursos sobre reverter o abandono do Jardim de Alah e resolver questões relativas à Cruzada São Sebastião são fortes. Cativam os incautos e os que não estudam a questão em profundidade. Quem poderia e posicionar contrariamente a tais benesses? Não se questiona por que o prefeito atual, quem promoveu a operação para vender o Jardim de Alah à iniciativa privada, está em seu quarto mandato e a praça está entregue ao Deus dará desde o primeiro. Não se recorda que parte do lugar foi destruído em função da obra da falsa linha 4 do Metrô (é a linha 1 estendida, obra de prioridade discutível diante das carências em mobilidade por todo o município); não se indaga se os idealizadores do projeto – consta que os empresários levaram a proposta à Prefeitura – aceitariam tratar de outras áreas públicas abandonadas, por exemplo, a Praça N. S. Auxiliadora, também no Leblon e quase totalmente ocupada, e inúmeras praças na Zona Norte. Por óbvio, interessa explorar um dos lugares mais nobres e valorizados da cidade, de enorme beleza, com vizinhança de bom poder aquisitivo, ladeado por bairros saturados onde não há terrenos disponíveis para construir. Bingo.
O argumento sobre a perda das árvores é facilmente derrubado. Sempre haverá a justificativa de que árvores podem ser plantadas, ou não teriam destruído a vegetação nas praças Nossa Senhora da Paz e Antero de Quental. Some-se o lobby agressivo, com diversos atores globais depondo em vídeos sobre o resultado maravilhoso da obra. Sim, é uma obra, uma construção de porte, um shopping como foi apelidado, fora dos alinhamentos que determinam que partes do tecido urbano são edificáveis.
Não é do que as Praças Almirante Saldanha e Grécia carecem. Coloque-se manutenção, iluminação, segurança e teremos local digno, integrado à orla da Lagoa Rodrigo de Freitas. Que tal os interessados voltarem ao Lagoon, onde existe a construção pronta e adaptada para novamente receber restaurantes? Seria uma bela triangulação. Concedido o Lagoon, com encargos, a contrapartida poderia ser cuidar do Jardim de Alah. O Prefeito será capaz de resolver de outro modo com respeito à área pública, compatível com o instituto do tombamento, libertando o local que nasceu para ser livre. Se quiser.
Comentários favoráveis nas redes sociais afirmam que bandidos, viciados e moradores de rua desaparecerão. É provável. Serão banidos, acamparão em outras terras. Não frequentarão os restaurantes. Em breve estarão mudança. Degredados em busca de outras calçadas e jardins.
A polêmica remeteu-me a uma torre natimorta no Parque do Flamengo. A progredir, o projeto de ocupação do Jardim de Alah será o primeiro passo para que surjam novos desmandos cidade afora.
O jardim clama “Ainda estou aqui”. “Deixe-me livre”.
Excelente, Andrea!