O anúncio publicado no O Globo desta quarta-feira de que o “Buraco do Lume” — tradicionalmente parte da Praça Mário Lago, usada coletivamente ao longo de décadas — dará lugar ao maior residencial do programa Reviver Centro, com 720 apartamentos, confirma um movimento persistente de apropriação do espaço público em prol de interesses imobiliários.
Esse terreno era de propriedade governamental na origem como toda a área resultante do desmonte do Morro do Castelo no início dos anos 1920. A análise dos projetos de urbanização para o local mostra que havia a intenção de deixá-lo livre unido a áreas vizinhas situadas entre o Largo da Carioca e a Praça XV de novembro, inclusive o trecho onde foi construído o Terminal-Garagem Menezes Cortes, lá previstos uma praça e garagem subterrânea.
Com as mudanças ao longo de um século, o vai-e-vem entre proprietários, intenção de uso, e modificação das leis urbanísticas ora restritivas, ora permissivas, em 2019 a área foi mais uma vez vendida à iniciativa privada, conforme a notícia no jornal O Globo.
Quanto aos antecedentes, na década de 1970, o Grupo Lume (nome formado pelas iniciais do empresário Linaldo Uchoa de Medeiros) comprou o imóvel então ativo do antigo Banco do Estado da Guanabara – BEG, futuro BANERJ, para lá erguer um prédio comercial com mais de 20 andares. A empresa faliu durante o início das obras, abandonando-a e deixando na área um grande buraco, escavado para abrigar as fundações e a garagem do prédio. O bom-humor do carioca apelidou o lugar de Buraco do Lume, como é até hoje conhecido.
A matéria também destaca os impactos culturais, simbólicos e ambientais dessa intervenção: urbanistas e arquitetos alertam para o risco de descaracterização do Centro histórico e perda de uma rara área verde no tecido urbano. Em outras palavras, ao invés de revitalizar o Centro como um espaço de vivência coletivo, esse projeto reforça o paradigma do “espigão”, descaracterizando elementos históricos e consolidando a especulação imobiliária em nome de uma revitalização duvidosa.
Ainda em 2019, o blog À Beira do Urbanismo já denunciava que esse pedaço de praça, leiloado por R$ 8,4 milhões, era alvo de uma ofensiva legal e política para transformá-lo em arranha-céu — ressoando a lógica de que “solo público é terreno à venda”. Essa crítica remete ao ponto do artigo da Vitruvius, dois anos depois, que denominou o Buraco do Lume de “praça de disputas”, não apenas urbanísticas, mas também simbólicas, por sua relevância como palco de manifestações políticas e referência do patrimônio coletivo.
Ao aprovar um projeto habitacional de grande porte no local, a Prefeitura parece ignorar não apenas os valores históricos e urbanos acumulados, mas também a importância de usos simbólicos do espaço — especialmente num contexto de crise climática, quando áreas verdes são vitais para microclima e qualidade de vida. Essa transformação, ainda que legal segundo os dispositivos do Reviver Centro, coloca em xeque o direito à cidade e à memória coletiva, confrontando o discurso da “revitalização” com uma realidade excludente e erosiva para o patrimônio público.
Outros textos sobre o tema publicados neste blog:
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Urbe CaRioca
Parte do Buraco do Lume vai dar lugar ao maior residencial do Reviver Centro, com 720 apartamentos; conheça os detalhes
Destombado pela Assembleia Legislativa (Alerj) no fim de 2022, o terreno dará lugar a um prédio com 24 andares
Por Luiz Ernesto Magalhães – O Globo

Destombado pela Assembleia Legislativa (Alerj) no fim de 2022, o terreno na região conhecida como Buraco do Lume, na Rua Nilo Peçanha, em pleno Centro do Rio, dará lugar a um prédio residencial com 24 andares, 720 apartamentos e cinco lojas comerciais. A autorização para construir na área foi concedida no fim do mês passado pela Secretaria municipal de Desenvolvimento Urbano e Licenciamento, com base na legislação do Reviver Centro, plano que se propõe a levar mais moradores ao bairro. A novidade dividiu empresários, que apostam no projeto como uma das âncoras do programa, e urbanistas, que defendem a preservação do espaço como uma “área de respiro” em ambiente já cercado por prédios altos.
O maior já licenciado
Em número de unidades, o projeto é o maior até agora licenciado pelo Reviver Centro. Estão previstas 720, que representam 13,75% das 5.236 já licenciadas.
A licença foi obtida pela Construtora Patrimar, que não sabe quando vai iniciar a obra porque ainda avalia a demanda do mercado. A impressão é que o projeto deve vir a atrair não apenas moradores e investidores, mas também turistas interessados em locações por temporada.
O arquiteto Fernando Costa, da Oté Arquitetura, responsável pelo projeto, deu alguns detalhes. Todos os apartamentos serão estúdios sem garagem e deverão ter entre 25 e 35 metros quadrados. No terraço (que o mercado só chama de “rooftop”) estão previstas área gourmet, com churrasqueira, piscina e vista garantida para a Baía de Guanabara. No térreo, haverá vagas para bicicletas e academia de ginástica.
O prédio ficará no terreno particular onde é, hoje, uma área arborizada, entre o Terminal Menezes Côrtes e a Praça Mário Lago, que tem o anfiteatro conhecido por manifestações políticas e culturais.
— A proposta é ter um projeto integrado. Para isso, teremos um projeto paisagístico com os dois primeiros andares com vegetação, como se fosse uma área de transição para a Mário Lago (logo em frente). Os acessos à praça serão entre espaços reservados para lojas comerciais — explica Fernando Costa.
O CEO da Patrimar, Alex Veiga, destaca que o terreno é um dos melhores para lançamentos residenciais.
— No entorno, há oferta de todo tipo de transporte: trens, VLT, metrô e barcas. E, certamente, a gente também vai revitalizar a Praça Mário Lago — diz ele.
O presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), Sidney Menezes, se diz preocupado com a obra.
— O impacto é negativo. Aquela região já tem uma ambiência urbana consolidada. Acho que deve provocar um adensamento excessivo naquela área — opina.
Já o presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscom), Cláudio Hermolin, pensa diferente:
— Para muitas famílias, o Centro é uma oportunidade de dar um ‘‘upgrade’’ onde escolheram morar. O metro quadrado para vendas na área fica entre R$ 10 mil e R$11,5 mil, inferior ao de outras regiões. Esse tipo de empreendimento atrai famílias da Zona Norte, da Zona Oeste e da Baixada que desejam morar mais perto do trabalho. Com a chegada de moradores, isso demandará um aumento da oferta de serviços do entorno, como padarias, dando mais vida para o Centro, que é aquilo que todos desejam.
Por sua vez, a ex-secretária municipal de Urbanismo, Andrea Redondo, diz que o projeto vai terminar por desfigurar o plano original para a área, desenhado após o desmonte do Morro do Castelo nos anos 1920.
— É um erro não se pensar a cidade como um todo. Se o projeto não der certo teremos um residencial subutilizado, abandonado. Lá atrás, a ideia original era um mini Central Park, que o pedestre pudesse caminhar por uma área arborizada desde as imediações do Convento de Santo Antônio (Largo da Carioca) até a Igreja de São José e a Praça XV. Mas o plano já foi descaracterizado com a construção do Edifício-Garagem Menezes Cortes, que ficava nesse traçado — afirma Andrea.
O CEO da Lobie, Ernesto Otero, especializado no desenvolvimento de mercado imobiliário, tem outra visão:
— Nenhum bairro do Brasil tem tanta infraestrutura instalada como o Centro do Rio. Os lançamentos mais recentes têm se esgotado rapidamente. Há ainda muita demanda.
O Buraco do Lume tornou-se conhecido como palco de manifestações da esquerda a partir dos anos 1980, quando o ex-deputado Wladimir Palmeira (PT) aparecia por lá para discursar sobre um caixote e prestar contas à população. Na praça, uma estátua em homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada em 2018, foi inaugurada há três anos.
Confusão comum
No meio político, houve ainda quem confundisse como uma coisa só as áreas pública (a praça) e privada (o terreno do projeto) da região. Em 2023, após o destombamento do terreno, o prefeito Eduardo Paes chegou a afirmar que não autorizaria qualquer licença no local.
— Achava que o Buraco do Lume como um todo era uma praça pública. Não sabia que havia um tereno particular, com potencial construtivo para residências, que é tudo o que a gente quer para o Centro — esclarece Paes.
O deputado federal Tarcísio Motta (PSOL) se alia aos críticos do projeto.
— Quem anda pelo Centro vê a quantidade de prédios vazios e lojas fechadas. Queremos mais gente morando no Centro, mas não precisamos de novos prédios. A Praça Mário Lago deveria ser revitalizada para se transformar num espaço de arte, cultura e lazer. Esse projeto só interessa à especulação imobiliária. Vai virar mais um prédio para oferecer Airbnb e ainda piorar o trânsito — observa o parlamentar.
O terreno, que mede 2.517 metros quadrados, está localizado em área que, após revisão da legislação do Reviver Centro, em 2023, classificou como de gabarito livre, sem limite de altura para edificações, exceto se estiver nas proximidades de bens tombados. A licença concedida é para construir 26,7 mil metros quadrados.
Saiba a história do Buraco do Lume
Localizado em um dos terrenos privados remanescentes do desmonte do Morro do Castelo, em 1922, o Buraco do Lume ganhou esse apelido da população graças a um projeto para a construção de um espigão com 50 andares no local. As obras começaram em 1972, mas a empresa faliu antes de terminá-las. Apenas parte das fundações e da garagem chegou a ser executada. A construção era tocada pelo Grupo Lume, batizado com as iniciais do empresário Lynaldo Uchoa de Medeiros, que planejava na época erguer o que seria o prédio mais alto do Brasil.
Com a falência, o imóvel passou a fazer parte dos ativos do antigo Banerj — o banco do Estado do Rio tinha ali perto sua sede, no Edifício Lúcio Costa, onde hoje funciona a Assembleia Legislativa (Alerj). Outra curiosidade sobre o terreno é que, nos anos 1960, o espaço serviu como canteiro de obras da atual sede da Alerj.
Com a privatização do Banerj, o imóvel passou em 2013 para a Treton Empreendimentos e Participações, ligada ao Banco Bradesco. Em 2019, o terreno voltou a trocar de mãos após ser leiloado por R$ 8,4 milhões para a Sal Participação e Administração de Bens. A intenção da empresa, na época, já era fazer um residencial que teria entre 20 e 22 andares. Mas o projeto não andou por questões legais.
Destombamento
No ano seguinte, o então prefeito Marcelo Crivella aprovou uma lei que tratava do recurso de “mais valia’’ e incluiu no texto um ‘‘jabuti’’: artigo que voltava a permitir que subissem no local prédios com 20 andares ou mais. A área havia se tornado não edificável em 1986, por decreto do prefeito Saturnino Braga.
Na época em que a lei de Crivella foi aprovada, fontes do mercado imobiliário estimavam que o empreendimento já poderia gerar, com vendas das unidades, cerca de R$ 800 milhões.
Mas a saga da área ainda não havia terminado. Com o restabelecimento dos padrões urbanísticos válidos até 1986, a Alerj aprovou uma lei decretando o tombamento da área em março de 2020, para enfrentar a iniciativa de Crivella. Em dezembro de 2022, outra reviravolta: na última sessão legislativa do ano, os deputados aprovaram um projeto do deputado Rodrigo Amorim (União) que destombou o imóvel. Ao longo desse processo, o imóvel foi revendido para a Patrimar.