Nos últimos dias a grande mídia trouxe três temas urbano-cariocas relevantes e relacionados de algum modo.
O primeiro refere-se ao anúncio de que a Prefeitura liberará, até dezembro, uma carta de crédito para servidores municipais para a compra de imóveis, com até 65,00m² apenas em um trecho do Centro do Rio de Janeiro: a área delimitada pelas Avenidas Beira Mar e Presidente Antônio Carlos, Rua Santa Luzia, Avenida Primeiro de Março, Rua Visconde de Inhaúma, Avenida Rio Branco e Rua Senador Dantas (OG 11/07 e 12/07). O objetivo é atrair moradores/servidores públicos para os prédios a serem construídos ou transformados em edificações residenciais e mistas, licenciados nos moldes previstos pela Lei Complementar nº 229 de 14/07/2021, que instituiu o programa chamado ‘Reviver Centro’. Parte da reportagem:
O segundo trata do famoso Edifício A Noite, situado na Praça Mauá, colocado à venda pelo Governo Federal e cujo terceiro leilão não teve interessados. (O Globo -14/07)
A terceira é sobre a compra, pela construtora Cyrela, de parte da antiga sede da empresa Furnas, situada no bairro de Botafogo, que, segundo a reportagem, corresponde à terça parte do quarteirão inteiro que abrigava a empresa (O Globo – 13/07).
Além das mencionadas, a Prefeitura também divulgou através da mídia os resultados do projeto para revitalizar o Centro do Rio ao se completar um ano da sua vigência (G1 09/07).
O conjunto de informações e os dados divulgados no site da Prefeitura pelo Relatório Anual do programa merecem comentários, não sem frisarmos que o desejável sucesso do programa Reviver Centro é fundamental para aliviar o coração da cidade e diminuir o estado de degradação e abandono que a região sofre há décadas. (Veja o quadro das licenças concedidas)
1. Cartas de crédito
A intenção é levar moradores para uma parte específica do Centro, conforme a reportagem e o mapa 1.
Note-se que, conforme o Mapa 2, de fato não houve pedidos de licenças para aquela área que será oferecida ao mercado imobiliário apostando-se na possível compra de apartamentos por servidores públicos municipais.
O resultado depende de duas variáveis que parecem imponderáveis: o interesse dos incorporadores e o interesse dos servidores, somados. Quanto ao primeiro, o prazo para a apresentação de projetos é o mês de setembro. As cartas de crédito estariam disponíveis até dezembro. A Prefeitura considera o tempo de cinco a seis anos para o servidor receber a nova casa.
Os funcionários trabalham em todos os bairros do Rio de Janeiro, nos mais variados equipamentos públicos municipais, seja escolas, postos de saúde, hospitais e setores administrativos. Não obstante a maior facilidade de transporte a partir do Centro, entendemos que não apenas os servidores públicos, mas, qualquer família, prefere, se possível, permanecer perto dos seus e nos bairros de origem ou de preferência por motivos pessoais. A proximidade de escolas e mercados é desejável, se não fundamental. Além disso, o tamanho máximo das unidades comporta apenas dois quartos. Esses aspectos podem limitar bastante o número de pessoas dispostas a arcar com um desconto em folha de pagamento para receber sua moradia minúscula daqui a cinco anos.
Um sistema de crédito imobiliário deveria preferencialmente liberar o recurso para o futuro devedor escolher o lugar e as condições de moradia que melhor o atendam e à sua família. Assim já foi feito na Prefeitura, com enorme sucesso.
2. Edifício A Noite
O desinteresse pelo prédio icônico, primeiro ‘arranha-céu’ do Rio, primeiro prédio construído com concreto armado, impressiona. Localizado em frente a dois museus novos, no início da Zona Portuária, e próximo a outros pontos turísticos, em tese seria disputado. Entrevistados entendem que o preço mínimo pedido é excessivo, considerando-se que a obra de recuperação do prédio será muito dispendiosa. Tememos que a falta de segurança, o isolamento da área e a ausência de equipamentos urbanos de apoio ao uso residencial ampliem essa dificuldade. Os investidores do mercado imobiliário atuam onde há expectativa de retorno. Por isso a compra do terreno de Furnas. Que se diminua o preço pedido pelo Edifício A Noite, e que a Praça Mauá reviva.
3. Furnas
Enquanto o Centro e a Zona Portuária imploram por investimentos e residentes, outros bairros do Rio anunciam novos empreendimentos continuamente. Chamam à atenção em especial três bairros da Zona Sul: Botafogo, Ipanema e Leblon. Nos três, sobreviverão para contar a história da cidade apenas as casas e pequenos edifícios preservados pelas Áreas de Proteção do Patrimônio Cultural – APAC e as construções que foram tombadas, salvo mais algum destombamento como ocorreu no caso do Cinema Leblon. Em Botafogo e Humaitá, mesmo com as restrições impostas pela Lei 434/1983, os muitos palacetes tombados, e os imóveis preservados pela APAC, a renovação urbana continua sem interrupção. Proposta no novo Plano Diretor a caminho pode exacerbar essa condição (veja a postagem “A proposta da Prefeitura para o Plano Diretor – comentário sobre Botafogo, de Rose Compans”). No quarteirão de Furnas por certo surgirá mais um grande condomínio, como aconteceu com os terrenos da Santa Casa, acontecerá no bairro do Flamengo (terreno onde funciona a Fundação Romão Duarte), e se pretende fazer no terreno da UFRJ onde funcionou o Canecão. Assim, a cidade perde áreas livres ou semi-ocupadas que poderiam ser transformadas em parques, praças… revertendo-se alguns imóveis pertencentes aos governos ou determinadas instituições, em favor da população. Foi o caso do terreno do Segundo Batalhão da PM, também em Botafogo, e do imóvel onde funcionou a garagem de bondes da antiga Companhia Ferro-Carril Jardim Botânico, no Flamengo, ambos vendidos pelo governo estadual à iniciativa privada.
Voltando ao Reviver Centro
Como é sabido, os incentivos urbanísticos e fiscais previstos na Lei 229/2021 preveem o ganho de potencial construtivo a ser utilizado em bairros da Zona Sul e da Zona Norte conforme projetos realizados no Centro seguindo as diretrizes estabelecidas.
O projeto de lei foi objeto de grande polêmica, em especial devido exatamente à chamada Operação Interligada, apelidado de “jabuti” e inserido no PLC quando já na Câmara de Vereadores e, ainda, não apresentado nas reuniões do Conselho Municipal de Política Urbana, como dever do Poder Executivo.
Mais de uma vez afirmamos neste espaço urbano-carioca que a lei era feita sob medida para bairros da Zona Sul ainda não dotados de Projeto de Estruturação Urbana – PEU, onde a altura máxima das construções não afastadas das divisas foi fixada em 12,00m até ser publicada uma nova lei. Em especial, o alvo seria Ipanema, dado às dimensões pequenas dos terrenos que não comportam prédios soltos. A complexidade do assunto foi explicada nos posts Sempre o Gabarito, 2021 – O Centro e a Operação Interligada para a Zona Sul e Reviver Centro – A ver. De fato trata-se de uma trama bem urdida, com foco nos necessários resultados positivos esperados para o Centro, liberando-se a Zona Sul, objeto de desejo do mercado imobiliário, sem cumprir a Lei Orgânica e sem elaborar leis específicas como devido.
Mas, a lei foi aprovada e não adianta chorar o concreto derramado.
Nas postagens Reviver Centro – Prédios e gabaritos, quem são seus pares? e Bem-vindas residências, quem são seus pares? indagamos onde seria aplicado o potencial construtivo obtido pelos empreendedores imobiliários como contrapartida pelas obras realizadas no Centro. Na ocasião, o dado, aparentemente, não estava ainda disponível. O relatório citado anteriormente, atualizado, mostra que a regra foi usada para o licenciamento de dois edifícios em Ipanema (Relatório Anual).
O processo de trocas teve início, portanto. Em Ipanema, como previsto por este blog.
O sistema revela que a relação não é biunívoca. Um empreendimento no Centro nem sempre corresponderá a apenas um em outro bairros. Nos dois casos foi utilizada pequena parte do potencial construtivo adquirido, em dois edifícios de pequeno porte. Possivelmente contrariando a Lei Orgânica do Município quanto à altura máxima de 12,00m para construções coladas às divisas, o que prevalece em Ipanema. Portanto, ainda há muitos metros quadrados a serem distribuídos pelo comprador. Ao menos aqui surgirão vários meio-irmãos. A ver.
Curiosamente, o prédio da Rua Irineu Marinho havia sido licenciado muito antes da Lei 299/2021, o respectivo alvará de obras sendo renovado ao longo dos anos. Curiosamente, por não ter construído, obteve o benefício. Sorte, talvez. Visão, talvez. Aposta em tempos melhores, talvez. Bom para o Centro, por certo quando ocupado.
Conclusão
Mais uma vez desejando sucesso para o ‘Reviver’, esperamos que o habite-se dos empreendimentos licenciados no Centro precedam os habite-se dos seus muitos pares futuros na Zona Sul e na Zona Norte. Que o Edifício A Noite seja reformado e ocupado. Que novos moradores do Centro cheguem com brevidade. Que todos possam escolher onde morar. Que as Cartas de Crédito sejam liberadas sem a Prefeitura determinar o local onde aplicá-las. Que o projeto para o terreno de Furnas seja benéfico para a cidade e para a população de Botafogo. E que a população carioca possa se sentir segura em todos os bairros da Cidade.
Urbe CaRioca