Mais-Valia: mais perene do que pandemia

Este blog já afirmou e repete. Eternos só Deus e a ‘Mais-Valia’. Quanto ao primeiro, acredite na Eternidade quem queira. Sobre o segundo, não há dúvidas. Trata-se do apelido dado às leis esdrúxulas – ditas urbanísticas (não o são) – que invertem os conceitos do Planejamento Urbano, instrumento que, na Cidade do Rio de Janeiro – abandonada até por São Sebastião -, é “Para Inglês Ver”.

Aos recém-chegados a este espaço urbano-carioca, recordemos.

A primeira lei é de 1946. Foi criada para abonar pequenas obras construídas em desacordo com a licença municipal, como telheiros e tanques a mais, basicamente acréscimos toleráveis desde que o interesse público não justificasse o seu desfazimento. Ao proprietário cabia pagar à Prefeitura – então Distrito Federal – o correspondente ao valor acrescido ao imóvel em decorrência do acréscimo (Decreto-lei nº 8720 de 18/01/1946).

Ao longo do tempo a lei passou a ser aplicada mediante interpretações variadas e reeditada com modificações. Ao invés de telhadinhos para garagens e churrasqueiras, aceitou acréscimos verticais nos edifícios, comparrtimentos além do gabarito fixado por leis urbanísticas, em geral apartamentos de cobertura. Mais adiante, andares inteiros e… novas coberturas acima destes. O ilegal tornou-se normal e legalizável, desde que se pagasse por isso.

As famigeradas leis são editadas com prazo de validade, prazo este sempre prorrogado algumas vezes como regra. Para quem já havia construído contrariando os códigos de obras vigentes, bastava pedir a aplicação da nova velha lei. Aos demais, concedia indiretamente tempo suficiente para iniciar obras à revelia de tudo. Estava instalado o círculo vicioso que perdura há quase oito décadas. Constrói-se sem licença e fora da lei, pede-se a legalização, paga-se, e o ilegal torna-se legalizado. Uma aberração urbano-carioca.

Há alguns anos, administração anterior do atual prefeito instituiu uma nova aberração: a permissão para construir antecipadamente contrariando as leis urbanísticas. Apresenta-se um projeto que desobedece às normas vigentes e a Prefeitura o aprova desde que se pague pelo ilícito contratado. A nova modalidade ganhou o apelido de “Mais-Valerá”. Nem o maior autor de filmes de ficção científica arquitetônica concebeu tal cenário mais do que sinistro.

Curiosamente, o Jornal o Globo publicou editorial no último dia 29/04 com o título “Anistia preventiva aprovada pela Câmara do Rio é disparate urbanístico”. O importante veículo da grande mídia se pronuncia com alguns anos de atraso. Conforme apontado acima, a primeira “Mais-Valerá” foi aprovada pelos vereadores em 2009, a partir de proposta do Executivo.

No mesmo dia, O Globo também publicou reportagem extensa sobre a nova velhíssima lei de “Mais-Valia-Mais-Valerá” então a caminho, a qual comentaremos em postagem próxima.

Ontem, o Projeto de Lei Complementar 88-A/2022 foi aprovado pelos vereadores e irá à sanção do Prefeito dos gabaritos altos, o que remete a afirmação recorrente neste blog: Planejamento Urbano, Plano Diretor e Códigos de Obras são enfeites carnavalescos na cidade que duram algum tempo e voltam no ano seguinte. Melhor se tivéssemos um prefeito de alto gabarito.

A “Mais-Valia” – acompanhada pelo seu par “Mais-Valerá” é mazela endêmica, incurável, pandemia que não termina.

Urbe CaRioca

Anistia preventiva aprovada pela Câmara do Rio é disparate urbanístico

Dispositivo conhecido como ‘mais valerá’ permite legalizar construções ilegais que ainda nem foram feitas

Acréscimos ilegais em construções do Rio poderão ser regularizados mediante pagamento de contrapartida – Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Editorial – Link original

Não satisfeita em aprovar a regularização de puxadinhos construídos em desacordo com a legislação urbanística, por meio do pagamento da taxa conhecida por “mais valia”, a Câmara de Vereadores do Rio autorizou também a legalização de acréscimos irregulares que ainda serão construídos no futuro, uma aberração alcunhada “mais valerá”. De autoria do Poder Executivo, o Projeto de Lei Complementar 88/2022, aprovado na última quinta-feira, estabelece condições especiais para licenciamento de obras ilegais, mediante pagamento de contrapartida. É a legalização da ilegalidade que ainda nem foi cometida.

A Prefeitura alega que o objetivo é permitir legalizar os imóveis em que não se justifica demolir os acréscimos ilegais. Compreende-se que, em muitos casos, é mais justo para o morador pagar pela obra feita sem autorização e regularizar a situação do imóvel junto ao município, também beneficiado pelo pagamento da contrapartida. O problema é definir o que é passível de regularização sem prejuízo ao ambiente, à circulação e às condições urbanas.

O projeto permite também pagar contrapartidas para que hotéis construídos com incentivos para a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016 — alguns até hoje inacabados — sejam transformados em edifícios residenciais ou noutros empreendimentos. A oferta de quartos cresceu de 29 mil em 2009 para 50 mil em 2016. Como o fluxo de turistas não acompanhou o aumento, vários estabelecimentos fecharam. Hoje há 47 mil vagas.

De todos os problemas, o maior é a permissão para legalizar obras que ainda não foram feitas. Trata-se de um incentivo evidente à construção de olho na ilegalidade. É um contrassenso a Prefeitura estabelecer uma legislação que leva em conta densidade demográfica, fluxo de tráfego, meio ambiente, infraestrutura e outros fatores para depois jogar tudo no lixo. Para que existe lei? Para criar a dificuldade e depois vender a facilidade? E como fica o planejamento urbano com essa bagunça? O que a Prefeitura faz é transferir sua responsabilidade de ordenamento da cidade ao morador. Não tem como funcionar. Em nenhum lugar se tem notícia desse tipo de anistia preventiva.

Um dos efeitos mais nocivos do projeto é oficializar e estimular a cultura da ilegalidade. A Prefeitura se torna cúmplice de práticas nefastas. Claro que a situação não é exclusiva do Rio, mas a capital fluminense é pródiga em construções irregulares, não apenas favelas nas áreas pobres. Em vez de a Prefeitura incentivar o respeito à lei, é a primeira a abrir caminho para o vale-tudo. Pagou, legalizou.

Embora o projeto seja de interesse do Executivo, o prefeito Eduardo Paes tem a obrigação de vetar esse disparate urbanístico, especialmente num momento em que se discute um novo Plano Diretor. É certo que a Prefeitura arrecadará mais, mas esses recursos são finitos, e os puxadinhos legalizados ficarão para sempre na paisagem do Rio. A desordem não pode ser fonte de lucro. E será difícil convencer o cidadão de que deve respeitar a lei ao construir, já que, mais cedo ou mais tarde, tudo se acerta.

Leia também:

25.04.2023 –  Mais Valia: ela voltará de novo, de novo, de novo …

11.02.2023 –  (I) Legalidades urbanísticas: “mais-valia” também na na Turquia

05.12.2022 – O solo urbano como bem comum: análise sobre os (des)caminhos para a recuperação de mais-valias fundiárias no Rio de Janeiro, de Edmar Augusto

29.11.2022 – Mais do mesmo: Gabaritos, Mais-Valia, Propaganda, Plano Diretor…

24.11.2022 – (I) Legalidades urbanísticas: Mais Valia, lei que contraria a lei sempre volta

22.11.2022 – Mais-Valia, sempre ela, a Eterna

01.09.2022 – A Mais-Valia que não Valeu

04.08.2022 – Mais-Valia, a Eterna

28.01.2021 – Mais-valia ampliada: STF mantém liminar sobre a Lei dos Puxadinhos 

16.12.2020 – Mais-Valia-Valerá ampliada, novo “round”

24.05.2020 – PLC nº 174/2020 – Mais-valia, Mais-valerá, Mais uma surpresa

09.11.2018 – Mais Valia, Mais Valerá, Vale tudo

16.02.2016 – Varandas- Fechamento e Mais Valia – Liminar concedida

23.07.2015 – Mais projetos de Lei Complementar, mais índices, “Mais Valia, “Mais Valerá”

26.06.2015 – A Urbe Carioca fervilha – Novo Rio, Barra, Shopping da Gávea, Sala Baden Powell e Mais Valia

23.05.2013 – Diversos, 23/05/2013: Piér, Metrô, Mais-Valia e Mais-Valerá

 

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